20 de abril de 2024
Diversos

“Pressa em condenar”, por Erick Pereira

Artigo de Erick Pereira publicado na Folha de São Paulo:

A ação individualizada de algumas autoridades do sistema de Justiça tem causado grande dano à ordem jurídica e à sociedade ao usar como matéria-prima a desqualificação pessoal e a ofensa moral.

Esse comportamento, adotado por quem deveria zelar pela correta aplicação da lei, só aumenta a turbulência decorrente da crise econômica e política que abate o país. Também é muito prejudicial às instituições —o que fica evidente em pesquisas recentes que mostram queda expressiva na credibilidade do Ministério Público e do Judiciário.

É preciso frear a incitação à insegurança, à intolerância e ao ódio.

Uma das distorções mais evidentes causadas por esse processo são os ataques, cada vez mais agressivos, contra o advogado, profissional amiúde confundido com os clientes que representa, até mesmo por investigadores dotados de formação jurídica.

De defensor do Estado democrático de Direito, da cidadania e da paz social, o advogado tem sido apresentado como cúmplice ardiloso da clientela, defensor de interesses escusos e parte dispensável na administração da Justiça —contrariamente ao estabelecido pela Constituição, que o coloca como função essencial à Justiça.

No atual contexto, posturas contramajoritárias são confundidas com subserviência e condescendência com o crime, a corrupção e os interesses corporativos.

Para que o combate à corrupção surte os resultados esperados, é preciso que seja efetuado dentro da lei. Não é aceitável prescindir do equilíbrio constitucional entre o Estado-acusador e a defesa, especialmente em cenários dialógicos conturbados, a exemplo do que vivemos agora.

Do contrário, fica por terra o sistema de pesos e contrapesos institucionais responsável por combater os abusos cometidos por integrantes de qualquer dos Poderes e por legitimar as escolhas feitas pela sociedade.

Diante de tanto ódio nas acusações, é necessário lembrar que a pressa em condenar é inimiga da Justiça, que, para ser feita, depende de legalidade, respeito e prudência.

Não podemos esquecer que o clamor popular impulsionou os brutais linchamentos do passado, transformando pacatos cidadãos em bárbaros e cruéis assassinos.

No século 12, com o estabelecimento da Inquisição, uma verdadeira histeria se agigantou por meio de movimentos organizados e forte propaganda. O resultado foi a realização de julgamentos sumários, sem defesa, que levaram à punição e assassinato de milhões de pessoas.

Mais de 800 anos depois, o clamor popular dita a pauta da Justiça. Trata-se de retrocesso preocupante, sobretudo porque decisões e julgamentos passaram a ter conteúdo emocional e midiático.

A restrição do exercício dos direitos políticos e de cidadania precisa estar expressa na Constituição ou em leis infraconstitucionais, não podendo ser determinada pela boa intenção dos julgadores ou dos procuradores e promotores. As ditaduras, aliás, sempre começam com pregações de sujeitos bem-intencionados.

A Lava Jato e suas operações derivadas conseguiram muitos benefícios para o Brasil. É lamentável, entretanto, que alguns de seus combativos e midiáticos discípulos passem a adotar o sacrifício dos direitos e das liberdades individuais como instrumento de trabalho.

Numa relativização da ordem normativa, a chantagem das conduções coercitivas e das prisões preventivas sem limites temporais coexiste com buscas e grampos ilegais na comunicação entre advogados e clientes.

A efetividade do combate ao crime depende, sobretudo, da compreensão de que ninguém pode se colocar acima da lei e decidir quando ela vale ou não.

ERICK WILSON PEREIRA, advogado, doutor em direito constitucional pela PUC-SP e presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB nacional.