25 de abril de 2024
Coronavírus

A VITÓRIA DOS CHEIROS E SABORES

Os comedores de batatas (1885) – Vincent Van Gogh – Museu Van Gogh, Amsterdã

Quantas vezes nos aconteceu, e esquecemos. Lugares, personagens e perrengues, quando estivemos ameaçados pela ignorância e salvos pelos prestativos garçons.

Piloto em  primeiros vôos, na megalópole de afamada culinária cosmopolita, a fome de carne fez o pedido.

Steak tartar.

Cochichos, entreouvidos e a determinação do maître para que um dos seus comandados, o baixinho de cabeça chata, fizesse a abordagem, na linguagem  comum dos paraíbas, ao freguês da mesa 27.

A do canto, tímida, por trás da coluna.

Com bons modos para não melindrar o conterrâneo, a explicação  do prato exótico, pedido só pelos da colônia teuta, traduzida ao pé da letra,  numa pergunta em xeque-mate.

Em qual  ponto,  desejava a carne crua.

E antes da dúvida resolvida, a sugestão de uma mais seca e assada. Mais parecida com a de sol.

Os sabores ultrapassam fronteiras e os viageiros seguem os cheiros.

A tentativa de quebrar a monotonia do hambúrguer, fritas e catchup levou a criança renovada nos parques da Disney a entrar no primeiro restaurante de luz vermelha e familiar, que encontrou.

Nos hieróglifos traduzidos do cardápio, nada que lembrasse o Changay do Alecrim.

A explicação estava do lado de fora, no letreiro em neon: Cozinha cantonesa.

A primeira sopa de barbatana de tubarão, a gente nunca esquece.

Em Cusco, a lembrança da culinária agresteira, prejudicada pelo espanto e cara de enjoo de quem não gostou e não vai comer das balzaquianas nórdicas (ou seriam, yankees as galegas?) da mesa ao lado, tête-à-tête com um cuy, com uma cenoura na boca, qual um preá à pururuca.

Em  Pucón, o curioso enfrentou com galhardia um mote com huesillos, mas não preservou o apetite para o congrio, depois de dois ‘pastel’ de choclo, de entrada.

A imagem da champanheira intocada, por receio de pagamento de taxa extra, no café da manhã do três estrelas madrilenho, na memória, virou natureza morta, digna de exposição permanente no Reina Sofia.

Todas essas lembranças  e a vontade de provar outros pratos, outras vezes, reforçaram a luta pela sobrevivência na pandemia.

O inonimado que ainda mete medo e veio pra demorar, tinha  pontos fracos.

O inimigo entrava pela boca e narinas, destruindo paladar e olfato.

Neste campo, e nas vias aéreas superiores, ocorreu a primeira grande derrota do invasor.

As pessoas, mesmo isoladas, em confinamento, não  haviam esquecido a boa mesa, com revelações de chefs, gourmants e connoisseurs, antes adormecidas por trás das culinaristas domésticas, postas em disponibilidade.

A guerra não acabou.

Não ensarilhem as armas, pantagruélicos.

O tinhoso, morto de inveja, mesmo travestido em novas cepas e variantes, não resiste aos nossos cheiros e sabores.

Bon appétit !

Natureza morta com absinto (1887) – Vincent van Gogh – Museu Van Gogh, Amsterdã

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