25 de abril de 2024
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AUTOENTREVISTA

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O Homem no Controle do Universo – Diego Rivera (1886-1957) – Afresco no Rockfeller Center,  Nova Iorque


A doutrinação socialista pelos professores das escolas privadas, capitalistas vorazes para cobrar mensalidades, é reclamação frequente.

Para esclarecer se é fenômeno moderno, este Território Livre localizou um sobrevivente da luta ideológica, testemunha de um dos períodos mais emblemáticos da participação política dos alunos e professores de tradicional educandário religioso de Natal.

Pacato cidadão, casado em primeiras e únicas núpcias, quatro filhos, médico, funcionário público aposentado, morador de um bairro de classe média alta da zona leste da capital potiguar, onde foi entrevistado.

A princípio, relutou em conversar quando soube que seria sobre coisas do passado.

Não vale a pena. São fatos para esquecer.

Diante da argumentação que suas lembranças poderiam aliviar as angústias de pais que não escondem a preocupação de estarem os filhos frequentando, mesmo que remotamente, aulas com conteúdo ideológico de esquerda, concordou em narrar os ocorridos por volta de 1968, o mais violento dos anos de chumbo.

A política era assunto discutido em sala de aula?

A mesma Igreja que apoiara o golpe militar, além dos seguidores do movimento conservador Tradição, Família  e Propriedade, tinha também o lado que defendia ardentemente, o fim do regime de exceção.

E isso entrava no currículo escolar.

Quem liderava esta tendência?

No nordeste, Pernambuco irradiava influências.

Banidos da vida pública, Miguel Arraes e Francisco Julião, eram idolatrados.

Dom Hélder Câmara, defensor dos direitos humanos, pregava a Igreja voltada para os pobres e a não-violência.

Os religiosos daqui, o tinham como modelo e havia sintonia de pensamento.

Um dos seus auxiliares mais próximos, o Padre Henrique Pereira que veio a ser torturado e morto por um grupo do Comando de Caça aos Comunistas em 1969, foi frequentador assíduo do colégio, tendo passado uma temporada, fugindo de ameaças.

Como era a participação dos alunos?

Com professores, claramente contrários ao regime militar, nas aulas de Português,  as sentenças a serem analisadas eram slogans contrarrevolucionários (contra a redentora) e a leitura de livros proibidos pelo arbítrio, estimulada.

A doutrinação era subliminar?

Não. Tudo era falado às claras e encorajada a participação ativa.

Além dos mimiografados, eram comuns os jornais murais de conteúdo social e político.

Pregados nas paredes e até nos troncos das mangueiras, em folhas de cartolina, desenhos, palavras de ordem e recortes de jornais de esquerda.

A volta da democracia, o fim da Guerra do Vietnã e ofensas aos militares (milicos), estavam entre os 10 mais explosivos assuntos da época.

Quem eram os líderes?

-A turma que terminou o científico em 1970 foi a mais engajada. E trágica.

Na volta das férias, um colega da turma um ano na frente da minha, havia  deixado o colégio e não se sabia para onde teria sido transferido.

Os boatos que aderira à luta armada só foram confirmados com a notícia do noticiário da TV que um jovem terrorista teria resistido à prisão e sido fuzilado num banheiro da rodoviária Novo Rio.

O codinome divulgado, do colega José Silton Pinheiro, ex-presidente do Grêmio Estudantil Marcelino Champagnat.

Outros entraram em organizações clandestinas?

Daquela mesma turma, saiu o único brasileiro condenado à morte na história da República.

O hoje juiz aposentado Theodomiro Romeiro dos Santos, atuava em Salvador, no Partido Comunista Revolucionário Brasileiro. Numa tentativa de fuga, foi acusado da morte de um sargento da aeronáutica.

E os professores?

Os antigos, com minguados salários, eram naturalmente revoltados.

Alguns,  estudantes universitários que traziam de suas faculdades, as hóstias para a comunhão nas mesmas ideias libertárias.

Lembro de um em particular.

François Silvestre, de Português. Passou um tempo afastado enquanto  “tirava uma cana”.

Morador da Casa do Estudante, foi o orador na saudação a autoridades em visita às necessidades nunca atendidas.

A mulher do governador não gostou do discurso e sobrou pra quem levava fama de subversivo.

O maior influenciador foi  um religioso cearense, Irmão Francisco.

Ele era o líder, admirado por todos.

Um destes professores que a gente nunca esquece.

O senhor acha que os alunos de hoje estão sendo doutrinados e correm risco de se tornarem esquerdopatas?

Ninguém tira nem bota rebeldia em jovens.

Muitos neo-liberais, conservadores, eleitores do “centrão”, foram trotskistas na juventude.

Relaxem, senhores pais.

A boina de Guevara não cai bem em quem já passou dos 40.

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(Este texto, publicado em 4/9/2020, sofreu algumas alterações na forma, sem comprometimento do conteúdo)

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