AUTOENTREVISTA
A doutrinação socialista pelos professores das escolas privadas, capitalistas vorazes para cobrar mensalidades, é reclamação frequente.
Para esclarecer se é fenômeno moderno, este Território Livre localizou um sobrevivente da luta ideológica, testemunha de um dos períodos mais emblemáticos da participação política dos alunos e professores de tradicional educandário religioso de Natal.
Pacato cidadão, casado em primeiras e únicas núpcias, quatro filhos, médico, funcionário público aposentado, morador de um bairro de classe média alta da zona leste da capital potiguar, onde foi entrevistado.
A princípio, relutou em conversar quando soube que seria sobre coisas do passado.
–Não vale a pena. São fatos para esquecer.
Diante da argumentação que suas lembranças poderiam aliviar as angústias de pais que não escondem a preocupação de estarem os filhos frequentando, mesmo que remotamente, aulas com conteúdo ideológico de esquerda, concordou em narrar os ocorridos por volta de 1968, o mais violento dos anos de chumbo.
A política era assunto discutido em sala de aula?
–A mesma Igreja que apoiara o golpe militar, além dos seguidores do movimento conservador Tradição, Família e Propriedade, tinha também o lado que defendia ardentemente, o fim do regime de exceção.
E isso entrava no currículo escolar.
Quem liderava esta tendência?
–No nordeste, Pernambuco irradiava influências.
Banidos da vida pública, Miguel Arraes e Francisco Julião, eram idolatrados.
Dom Hélder Câmara, defensor dos direitos humanos, pregava a Igreja voltada para os pobres e a não-violência.
Os religiosos daqui, o tinham como modelo e havia sintonia de pensamento.
Um dos seus auxiliares mais próximos, o Padre Henrique Pereira que veio a ser torturado e morto por um grupo do Comando de Caça aos Comunistas em 1969, foi frequentador assíduo do colégio, tendo passado uma temporada, fugindo de ameaças.
Como era a participação dos alunos?
–Com professores, claramente contrários ao regime militar, nas aulas de Português, as sentenças a serem analisadas eram slogans contrarrevolucionários (contra a redentora) e a leitura de livros proibidos pelo arbítrio, estimulada.
A doutrinação era subliminar?
–Não. Tudo era falado às claras e encorajada a participação ativa.
Além dos mimiografados, eram comuns os jornais murais de conteúdo social e político.
Pregados nas paredes e até nos troncos das mangueiras, em folhas de cartolina, desenhos, palavras de ordem e recortes de jornais de esquerda.
A volta da democracia, o fim da Guerra do Vietnã e ofensas aos militares (milicos), estavam entre os 10 mais explosivos assuntos da época.
Quem eram os líderes?
-A turma que terminou o científico em 1970 foi a mais engajada. E trágica.
Na volta das férias, um colega da turma um ano na frente da minha, havia deixado o colégio e não se sabia para onde teria sido transferido.
Os boatos que aderira à luta armada só foram confirmados com a notícia do noticiário da TV que um jovem terrorista teria resistido à prisão e sido fuzilado num banheiro da rodoviária Novo Rio.
O codinome divulgado, do colega José Silton Pinheiro, ex-presidente do Grêmio Estudantil Marcelino Champagnat.
Outros entraram em organizações clandestinas?
–Daquela mesma turma, saiu o único brasileiro condenado à morte na história da República.
O hoje juiz aposentado Theodomiro Romeiro dos Santos, atuava em Salvador, no Partido Comunista Revolucionário Brasileiro. Numa tentativa de fuga, foi acusado da morte de um sargento da aeronáutica.
E os professores?
–Os antigos, com minguados salários, eram naturalmente revoltados.
Alguns, estudantes universitários que traziam de suas faculdades, as hóstias para a comunhão nas mesmas ideias libertárias.
Lembro de um em particular.
François Silvestre, de Português. Passou um tempo afastado enquanto “tirava uma cana”.
Morador da Casa do Estudante, foi o orador na saudação a autoridades em visita às necessidades nunca atendidas.
A mulher do governador não gostou do discurso e sobrou pra quem levava fama de subversivo.
O maior influenciador foi um religioso cearense, Irmão Francisco.
Ele era o líder, admirado por todos.
Um destes professores que a gente nunca esquece.
O senhor acha que os alunos de hoje estão sendo doutrinados e correm risco de se tornarem esquerdopatas?
–Ninguém tira nem bota rebeldia em jovens.
Muitos neo-liberais, conservadores, eleitores do “centrão”, foram trotskistas na juventude.
Relaxem, senhores pais.
A boina de Guevara não cai bem em quem já passou dos 40.
(Este texto, publicado em 4/9/2020, sofreu algumas alterações na forma, sem comprometimento do conteúdo)