25 de abril de 2024
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CARTA AO CORAÇÃO DO DOUTORANDO

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Lição de anatomia do Dr. Van der Meer (1617) – Van Mierevelt – Museu de Delft, Países Baixos


Caro colega,

Pra mim você já é médico.

Não são três ou quatro meses que fazem a diferença.

Você é de uma turma especial e única.

Aquela.

A inesquecível.

Formada no ano 2020.1, em plena curva ascendente dos casos da maior pandemia que já acometeu a humanidade.

Turma diferente, como jamais haverá outra igual.

Só a sua vai receber o disputado e mais que sonhado canudo, sem as pompas da maior festa de todas.

Não se chateie, pensando que de nada valeram as economias, festinhas, churras, rifas e tudo o mais que a comissão de formatura imaginou. Tudo que se juntou desde  que saiu o resultado do SISU.

Vai ter tempo. E vai ser festão.

A primeira que vai reunir a galera, como tantas outras que vêm pela frente.

Já pensou, reencontrar e ficar sabendo o destino inicial dos colegas e amigos?

Até onde cada um foi bater.

Quem casou, e quem sabe, já a tempo de conhecer os bruguelos.

Não precisa nem dizer, mas lembro.

O setor de saúde, a assistência, atravessa mais uma crise. Crônica e orgânica.

Pelo menos,  nos últimos 42 anos, tem sido assim. Posso dar meu testemunho.

As soluções são repetidas e declamadas em versos parnasianos. Seu Raimundo sabe. Todo mundo, também.

Investir na prevenção. Na atenção básica. Regionalizar. Hierarquizar. Uma Mayo Clinic em cada cidade-polo.

E depois de tantas outras promessas nunca cumpridas, os poderosos vez por outra lembram, e não têm como deixar de regurgitar,  que há de se perseguir  salários dignos.

Os mesmos que os sindicalistas traduzem como aviltantes.

E continuamos farinha de tapioca que se encontra em qualquer bodega. Toda igual, branquinha e barata, como o sal da terra.

Peço que lembre de uma coisa, no futuro, frente a situações semelhantes. Que serão muitas.

Quando não se sabe como resolver um problema, tudo é feito e pouco muda.

Nada falta, mas continua faltando.

A prioridade de palanque volta. Debaixo dos holofotes.

Agora, passa  pela cabeça dos iluminatti,  que tem um montão de quase médicos e só com um empurrãozinho, bastando um decreto de algum ministro abilolado, eles  já podem cair na vida.

E nas suas muitas armadilhas.

Para quem está formado há muito tempo, relando pelos Emergências e UTIs, não oferecem adequada  segurança no trabalho.

Até em hospital chic faltam equipamentos de proteção individual.

Mesmo quem já anda meio surdo de tanto ouvir­ bip-bip de monitor, questiona e pensa seriamente em não comparecer a certos plantões.

Querem dar a você, um carimbo e uma máscara cirúrgica. Vão pedir para que  leve o estetoscópio e exigir treinamento. Rapidíssimo.

Resumido em três palavras: agora, te vira!

Não aceite!

Pelos seus pais idosos.

Pelos colegas que vão ser seus cônjuges.

Pelos filhos ainda não gerados.

Pelos netos que haverão de vir,  para alegrar sua aposentadoria.

Não aceite!

Mesmo que a oferta venha embrulhada numa carteira de trabalho assinada e uma bolada por cada plantão.

Não aceite!

Não estou falando em frouxura. Nem covardia.

Você tem muito a dar.

Muito mesmo.

Nas próximas catástrofes que  não deixarão de acontecer. Diariamente.

Deixe para depois que  já tiver pago a disciplina que não consta do currículo de nenhuma faculdade.

Experiência de vida.

Como doutorando, participe da guerra.                                   

Na posição que os velhos mestres, comandantes dos nossos quartéis, sempre ensinaram, e  que será respeitada pelos novos professores que você vai encontrar na residência médica.

Estudante que nunca deixará de ser.

Continue aprendendo, ao lado de quem sabe, auxiliando e avançando neste fascinante território que tem muito a conquistar.

Sua glória de herói vai chegar.

Ainda não é hora.

Não, desta vez.

Agora, diga NÃO.

                                      ***

Que este texto, publicado em 29/03/2020, quando começava a vacinação para o pessoal da linha de frente da área da saúde,   tenha tocado o coração de algum jovem médico.

O mesmo que agora enfrenta os velhos desafios profissionais.

Sem concurso público há 12 anos, os médicos do estado estão em estado de greve: a classe ficou de fora da revisão do plano de cargos e salários, sob argumento que seus contracheques já são polpudos.

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A visita do médico – Richard Brakenburg (1650/1702) – Coleção Wellcome, Londres,

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