DOLOROSAS LEMBRANÇAS FLUTUANTES
O mundo dos cnidários é fascinante.
O deslumbramento começa pelos nomes dos seus habitantes.
Corais, água-vivas, hidras, medusas, anêmonas do mar, caravelas.
A Biologia considera, na escala evolutiva, os primeiros animais a apresentar uma cavidade digestiva.
Característica que os fez conhecidos como celenterados e alguns confundirem com celerados.
Exuberantes e ameaçadores, quais sicários à procura da próxima vítima, singram mares de águas tépidas e calmas, ao gosto dos ventos.
Vistas como chegam ao destino final, no porto das praias, já não causam nenhum temor.
A sina é rolar ao ritmo das marés, ter seus tentáculos rendidos pelas areias e secar para sempre, ao sol.
A foto publicada pelo sobrinho, fotógrafo-cirurgião, chama a atenção pela beleza plástica e evoca recordações da infância.
Traumáticas e doloridas.
No tempo em que o veraneio era em período integral e contínuo, não durava menos de dois meses. Das vésperas do Natal à quarta-feira de cinzas.
Em verões de aventuras à luz da lua e das lâmpadas Aladin e Coleman, nos banhos de cuia à beira dos poços e tantas outras aulas rústicas da professora natureza.
A indumentária para os meninos, bastava o básico. Simples, como silvícolas que quase viravam.
Dois calções no revezamento enxuga e molha.
Camisas dispensadas, que era preciso trocar a epiderme como a cobra, o couro.
Calçados esquecidos, menos pelos bichos tunga penetrans, depois retirados dos cantos de unha, por exímias podólogas de forno e fogão.
Antes que o vestuário de nylon chegasse aos manguezais, não havia ainda a tecnologia das redinhas protetoras dos possuídos pudendos.
A liberdade das partes pudibundas era o preço pago pelos perigos, o maior deles, o sorrateiro ataque dos coriscos cáusticos lançados de alguma nau desgarrada da frota de caravelas, até a três metros de distância do alvo.
A lembrança álgica é sentida como se o dano causado na única parte do corpo onde a proteção é também a armadilha, por manter presos os diminutos fios venenosos, estivesse ocorrendo agora.
Os mais sortudos, atingidos nos outros membros contavam com tratamento imediato e eficaz.
Algum amigo com a bexiga transformada em almotolia e o santo alívio do morno sedativo à base de ureia.
A dor forte, o inchaço e a ardência deixadas pela ação do veneno na pele, tinha só um lenitivo eficaz.
Um unguento caseiro à base de araruta e a recomendação de andar com as pernas levemente abertas por três a quatro dias.
Como dói uma fotografia.
E a idade que ficou para trás.
(Evocação de texto publicado em 30/08/2020)