FEITIÇOS DE MORAES
Os dias têm sido iguais.
Depois da flexibilização e da vacina, a ameaça de uma terceira onda exige uma nova quarentena.
Inativos, aposentados, sedentários, quase abstêmios, celibatários binários, autônomos para deslocamentos ao supermercado e farmácia, em home office, dedicam-se às tarefas domésticas, em rotinas certas e bem sabidas.
Como se todo dia agora, não fosse dia do índio que sai da toca somente para caçar a sobrevivência.
Trocar as roupas de cama às segundas, deixar a louça suja acumular nos fins de semana, pedir a comida do restaurante aos domingos.
Uísque da happy hour, vinho do sábado à noite, cervejinha aos domingo. Ninguém é de ferro, na segunda.
As mesmas 24 horas, tardes, manhãs e noites, e os dias tão iguais.
Se neste momento, todos os bares estão vazios, não é por decreto do governo nem porque hoje não seja sábado.
No recolhimento, em qualquer tempo, é sempre bom revisitar Vinicius de Moraes, n’ O Dia da Criação.
Porque neste momento há um casamento
Adiado
Há um divórcio e um violamento. Na saúde e na doença
Há um homem rico que se mata E um miserável que resiste
Há um incesto e uma regata Que ninguém assiste
Há um espetáculo de gala Na live do artista
Há uma mulher que apanha e cala E uma Maria da Penha que grita
Há um renovar-se de esperanças Na profissão brasileira
Há uma profunda discordância Pelo poder rachado ao meio
Há um sedutor que tomba morto E um Narciso, em férias
Há um grande espírito de porco Que assusta e destrói
Há uma mulher que vira homem E pro armário, não volta
Há criancinhas que não comem E jejuam de escolas
Há um piquenique de políticos Gulosos
Há um grande acréscimo de sífilis Chikungunya, zica, dengue, covid-19
Há um ariano e uma mulata Um chinês e uma variante indiana
Há uma tensão inusitada No futuro que a Deus pertence
Há adolescências seminuas E nudes de ninfetas
Há um vampiro pelas ruas De Mãe Luíza, sucursal da Transilvânia
Há um grande aumento no consumo Mais Rivotril que Pitú
Há um noivo louco de ciúmes Virtuais
Há uma garden party na cadeia Em prisão domiciliar
Há uma impassível lua cheia De saudades
Há damas de todas as classes Mascaradas
Umas difíceis, outras fáceis De olhar
Não há um beber e o que brindar
Não há a perspectiva do domingo
Porque hoje, todos os dias são iguais
http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/o-dia-da-criacao#.XtJMuQ_x4q0.email
Vinicius de Moraes (1913-1980)
O texto de hoje ” tá mais mió do que bom.” É uma sobremesa servida antes do café da manhã. Bom dia com saúde e cuidados redobrados para fugir da maldita covid.
Bom-dia professor,
Que bom que estes textículos não causam indigestão.
Os dias melhores estão por vir.