28 de março de 2024
MemóriaPolícia

JACAREZINHO, UMA TRAGÉDIA REVISITADA

Favela (1958) – Di Cavalcanti – Coleção Rose e Alfredo Setúbal, São Paulo

O Massacre de Jacarezinho completa um ano.

A desastrada incursão policial  na comunidade carioca, deixou um rastro de 29 mortes, promessas de ações governamentais e impunidade.

As 39 mil almas – o mesmo número das que vivem em Nova Cruz– espremidas em barracos, há muito tempo, correm, e fogem, e se ajoelham, e choram, e se arrependem, e pedem clemência, e recebem pontapés, e levam bala na nuca,  pelos becos, vielas, lajes e palafitas do palco da sangrenta operação policial, que não começou nestes tempos de pandemia.

Quem poderia ser o padrinho de um dos meninos mortos com um fuzil automático nas mãos, recorda uma manhã deslumbrante de sol na cidade que  continua acolhendo  quem procura horizontes além de onde o rio Curimataú faz a curva.

Em 1977,  quase todos em revoadas nos ventos sudestes, visavam passaportes nas cercanias do Buraco do Lacerda e se instalavam em algum abrigo ajeitado por parente ou conhecido, entre a Praia de Ramos e o Morro do Alemão.

A primeira e única visita do príncipe-herdeiro de nobre família do agreste potiguar, foi testemunhada pelo fidalgo Nilson Leite Rebouças, falecido precocemente, pro-cônsul mossoroense na República Independente da Pensão de Dona Rosa Brandão e registrada nos anais da memória desbotada pelo tempo.

O relatório circunstanciado, publicado neste Território Livre no primeiro dia de junho do ano da graça de 2019, é prova que a vida dos  migrantes nordestinos não mudou em meio século.

A história de um deles é exemplar.

Sem perspectivas na  cidade do interior, como muitos da sua idade,  resolvera tentar a sorte no Sul.

Encantado com promessas de emprego e as belezas da cidade maravilhosa, foi ficando.

Adaptou-se logo ao corre-corre e costumes da metrópole. E usos, também.

Do barraco de parentes para o próprio,  foi um pulo.

Sobre duas ou três palafitas.

Jacarezinho! Avião!

Já era assim antes do canto do síndico do W/Brasil.

O primeiro emprego a gente nunca esquece.

Transporte de coisas de valor. Em trouxinhas.

Jacarezinho! Avião!

Foi galgando posições na organização. Depois de ser promovido a  gerente, mandou buscar o resto da família.

Quando soube que o amigo de infância, prestes a ser médico,  estava morando por uns tempos na mesma cidade, o convite para apadrinhar o primeiro filho, ainda no ventre da companheira.

Acertaram uma visita para os detalhes da festa do batizado.

Num sábado, na companhia de quem conhecia aquelas ruas, vielas e becos, a recepção  pela matriarca, no ponto de ônibus indicado.

Em frente, outro migrante, dono de sapataria, ao perceber o destino do grupo, recomenda, com ênfase, a desistência do que poderia vir a ser uma aventura perigosa.

Com os esclarecimentos que um salvo-conduto, a ordem dos hômi, assegurava o direito constitucional de ir e vir, o encontro foi realizado sem atropelos.

Com galinhada, farofa, cerveja e saudades.

A consagração do novo cristão nunca viria a acontecer, por motivo registrado nas estatísticas da mortalidade  perinatal.

As notícias da família carioca também feneceram.

Até voltarem alguns anos depois, com o anúncio da tragédia e a dúvida final:

Como foi que aquela bala perdida (ou não tão perdida assim), foi achar o compadre Cabelinho?

Mulheres protestando (1941) – Di Cavalcanti

 

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