JACAREZINHO, UMA TRAGÉDIA REVISITADA
O Massacre de Jacarezinho completa um ano.
A desastrada incursão policial na comunidade carioca, deixou um rastro de 29 mortes, promessas de ações governamentais e impunidade.
As 39 mil almas – o mesmo número das que vivem em Nova Cruz– espremidas em barracos, há muito tempo, correm, e fogem, e se ajoelham, e choram, e se arrependem, e pedem clemência, e recebem pontapés, e levam bala na nuca, pelos becos, vielas, lajes e palafitas do palco da sangrenta operação policial, que não começou nestes tempos de pandemia.
Quem poderia ser o padrinho de um dos meninos mortos com um fuzil automático nas mãos, recorda uma manhã deslumbrante de sol na cidade que continua acolhendo quem procura horizontes além de onde o rio Curimataú faz a curva.
Em 1977, quase todos em revoadas nos ventos sudestes, visavam passaportes nas cercanias do Buraco do Lacerda e se instalavam em algum abrigo ajeitado por parente ou conhecido, entre a Praia de Ramos e o Morro do Alemão.
A primeira e única visita do príncipe-herdeiro de nobre família do agreste potiguar, foi testemunhada pelo fidalgo Nilson Leite Rebouças, falecido precocemente, pro-cônsul mossoroense na República Independente da Pensão de Dona Rosa Brandão e registrada nos anais da memória desbotada pelo tempo.
O relatório circunstanciado, publicado neste Território Livre no primeiro dia de junho do ano da graça de 2019, é prova que a vida dos migrantes nordestinos não mudou em meio século.
A história de um deles é exemplar.
Sem perspectivas na cidade do interior, como muitos da sua idade, resolvera tentar a sorte no Sul.
Encantado com promessas de emprego e as belezas da cidade maravilhosa, foi ficando.
Adaptou-se logo ao corre-corre e costumes da metrópole. E usos, também.
Do barraco de parentes para o próprio, foi um pulo.
Sobre duas ou três palafitas.
Jacarezinho! Avião!
Já era assim antes do canto do síndico do W/Brasil.
O primeiro emprego a gente nunca esquece.
Transporte de coisas de valor. Em trouxinhas.
Jacarezinho! Avião!
Foi galgando posições na organização. Depois de ser promovido a gerente, mandou buscar o resto da família.
Quando soube que o amigo de infância, prestes a ser médico, estava morando por uns tempos na mesma cidade, o convite para apadrinhar o primeiro filho, ainda no ventre da companheira.
Acertaram uma visita para os detalhes da festa do batizado.
Num sábado, na companhia de quem conhecia aquelas ruas, vielas e becos, a recepção pela matriarca, no ponto de ônibus indicado.
Em frente, outro migrante, dono de sapataria, ao perceber o destino do grupo, recomenda, com ênfase, a desistência do que poderia vir a ser uma aventura perigosa.
Com os esclarecimentos que um salvo-conduto, a ordem dos hômi, assegurava o direito constitucional de ir e vir, o encontro foi realizado sem atropelos.
Com galinhada, farofa, cerveja e saudades.
A consagração do novo cristão nunca viria a acontecer, por motivo registrado nas estatísticas da mortalidade perinatal.
As notícias da família carioca também feneceram.
Até voltarem alguns anos depois, com o anúncio da tragédia e a dúvida final:
Como foi que aquela bala perdida (ou não tão perdida assim), foi achar o compadre Cabelinho?