Mudança de tom: Dois Bolsonaros em uma semana de Quarentena
Por Josias de Souza
No intervalo de uma semana, Jair Bolsonaro despejou na sala de estar dos lares brasileiros dois pronunciamentos.
No primeiro, comparou o coronavírus a uma “gripezinha”. No segundo, transmitido em rede nacional na noite desta terça-feira, declarou que “estamos diante do maior desafio da nossa geração.”
Entre uma aparição e outra, Bolsonaro excedeu-se na defesa do fim do isolamento social. E terminou isolado, sob contestação dos seus principais ministros, das redes sociais, do Legislativo, do Judiciário e das janelas que, proibidas de sair às ruas, voltaram a tomar gosto pelo som estridente das panelas.
A essa altura, qualquer vestígio de trégua interessa a Bolsonaro, mesmo que seja um compromisso insincero. O problema será quebrar o ceticismo que leva os atores políticos a enxergarem na retórica amena do presidente traços de hipocrisia.
É como se Bolsonaro, depois de aparecer na TV elevando a temperatura da chapa até o seu grau máximo, voltasse à presença dos brasileiros para informar que decidiu se dedicar à tarefa de
Horas antes de gravar o pronunciamento que exalava concórdia, Bolsonaro repetia, no tom encrespado de sempre, suas teses em defesa da interrupção do isolamento social.
Chegou a falsear declarações do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom.
O timbre de Bolsonaro minguou na proporção direta do crescimento das estatísticas macabras da pandemia de coronavírus. Os dados foram despejados na sala de imprensa do Planalto no instante em que o presidente gravava o pronunciamento.
Registraram-se nesta terça-feira dois recordes. Num único dia, confirmaram-se 1.138 diagnósticos de novos contágios, elevando para 5.717 a quantidade de pessoas infectadas. No mesmo intervalo, contabilizaram-se 42 cadáveres. Os pacientes que desceram à cova somavam, até o instante da entrevista, 201.
A situação estaria pior sem a tática do isolamento social, fez questão de realçar o ministro Henrique Mandetta (Saúde) na conversa com os jornalistas. Sintomaticamente, a defesa do fim do confinamento foi apagada do discurso de Bolsonaro. Optou-se por uma mudança sutil: a equiparação do salvamento de vidas e de empregos.
A mistura do cheiro de enxofre que exalava dos dados da Saúde com o isolamento político fez com que Bolsonaro optasse por dar mais ouvidos ao general Luiz Eduardo Ramos, coordenador político do governo, do que ao filho piromaníaco Carlos Bolsonaro, o vereador carioca que passou a dar expediente no terceiro andar do Planalto, a poucos metros da maçaneta do gabinete do pai.
O novo pronunciamento deixou a impressão de que a mente de Bolsonaro se abriu para os conselhos da ala fardada do governo. Mas a cabeça do presidente continua sendo uma espécie de terreno baldio onde há sempre alguém atirando alguma sujeira.
De resto, é imperioso notar que o cérebro de Bolsonaro começa a funcionar no momento em que ele acorda e não para até que desça do carro, na frente do Alvorada, para ofender os repórteres. Nada impede que o capitão volte ao normal numa das inúmeras declarações que fará até o final de semana.
No pronunciamento da semana passada, Bolsonaro trazia a língua engatilhada. Atirou contra os meios de comunicação: “Espalharam a sensação de pavor.” Alvejou governadores e prefeitos: “Devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércios e o confinamento em massa.”
Nesta semana, Bolsonaro exaltou a importância da “união de todos”. Propôs que “Parlamento, Judiciário, governadores, prefeitos e sociedade” se juntem “num grande pacto para a preservação da vida e dos empregos.” Falou num timbre comedido e respeitoso. Ou seja: estava inteiramente fora de si.
O Bolsonaro do primeiro discurso parecia brincar a sério de roleta-russa, sem se preocupar com as consequências.
No segundo discurso, ele continua brincando. A diferença é que agora o capitão dispara palavras sensatas a esmo, protegido pela certeza de que manipula uma sinceridade completamente descarregada.