O PIX MATOU O LEITOR SOVINA
Na Sereníssima República de Veneza foram encontrados os vestígios do que seria, séculos depois, a poderosa e onipresente imprensa.
As notícias concisas cabiam numa folha de papel pergaminhado.
Escritas à mão, eram vendidas ou alugadas.
Pelo preço de um pão, uma moedinha gazzetta, quem quisesse saber as boas e más novidades do ducato tinha o direito de ler o protojornal, contanto que o devolvesse para outros fiés leitores também fazerem bom uso.
Não se sabe se as boias das novidades vencidas em dias passados, tinham o mesmo destino dos seus sucedâneos.
Se embrulharam os peixes no canto do mangue do Adriático ou recicláveis, tiveram outro uso sanitário, como item de higiene pessoal.
Como ainda não havia jornais nem jornalões, os calígrafos copiadores eram conhecidos como gazeteiros.
Na hierarquia da imprensa escrita, a categoria foi sendo rebaixada até ser posta fora das redações, para o trabalho insalubre da venda direta ao público.
Na Tranquilíssima Província do Rio Grande, onde em cada esquina havia um poeta, em toda rua tinha um jornal, levou muito tempo para as técnicas da fidelização da clientela ganharem força.
Mesmo quando o bipartidarismo midiático triunfou, os periódicos não entravam em acordo.
O líder, atestado pelo Instituto Verificador de Circulação, fazia questão da venda avulsa, por batalhão de frilas, colaboradores independentes.
Antes da invasão bárbara dos flanelinhas, sinais de trânsito foram pontos de venda, respeitada a exclusividade do donatário do pedaço.
Entregador de jornal era profissão, sem nenhum glamour mas de muita confiança.
O freguês sabia que a leitura diária estaria na caixa do correio na hora certa, antes dos primeiros raios fúlgidos do sol inclemente.
Os microempreendedores volantes investiam em ativos de recebimentos futuros e certos. Lucravam no ágio que recebiam do departamento comercial das empresas e nas gorjetas dos trocos que sobravam da generosidade dos pagadores semanais.
A profissão resistiu ao tempo e às relações formais de trabalho.
Evoluiu dos pregoeiros pedestres, aos entregadores ciclistas.
Deixou pelo menos, um ícone.
Alberis.
A mais completa tradução da atividade.
Ficaram na lembrança, suas manchetes não impressas, de crimes imaginários e viúvas assassinas.
Enquanto resistirem os jornais de papel, os gazeteiros estarão em nossas vidas.
Agora anônimos, anunciam com os roncos das motocicletas, que as notícias nem tão fresquinhas, chegaram para completar o café-da-manhã.
Os recalcitrantes leitores não sentem mais o cheiro nem sujam as mãos de tinta, mas mantêm a tradição.
Gratificação especial em datas comemorativas para quem presta um serviço nem mais tão essencial.
Um singelo presente. Uma doação. Umas festas.
Na Páscoa, o jejum continua sagrado.
O pequeno envelope solto entre os páginas dobradas, tal apêndice do caderno da editoria econômica, é a cobrança antecipada.
Este ano, uma novidade à prova de esquecimento ou dificuldade logística, na resposta remuneratória.
Devido ao distanciamento pandêmico, o gazeteiro está sugerindo depósito em conta bancária.
E deixa anotada, a chave do pix.
Una gazzetta di Venezia
Parabéns Domício!
Você tem magia para lidar com as palavras, e traz conhecimento velho/novo, sempre.
Nasci em Natal, e , ainda criança, por volta de 1954, 1955, conheci como gazeteiro, um negro chamado Cambraia, que vendia jornal pelas ruas da cidade, cantando as notícias, era bonito de ver…
Estamos na idade de contar essas estórias.
O tempo, a pandemia provê.