29 de março de 2024
Coronavírus

PENITÊNCIA SEM GRAÇA

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Maria Madalena em Penitência com Crucifixo                       El Greco (1590)


Suspirando, gemendo e chorando, a humanidade está sendo conduzida  por longo vale de lágrimas.

Os recalcitrantes, tão teimosos quanto os negacionistas, insistem em não exergar o óbvio.

Os novos hábitos formados no distanciamento e na reclusão voluntária são a piedosa, doce e clemente protetora que nos acompanha neste desterro, mantendo a esperança da chegada de melhores tempos.

Nesta sofrida jornada, velhos costumes têm grandes chances de não sobreviver.

Vão ficar na lembrança e no repertório das  estórias para contar depois.

A começar pela ausência das resoluções de ano novo.

Ninguém postou nos estertores do finado que se pensava ser o único a ser esquecido, o que faria quando a peste tivesse saciado seu apetite voraz.

Ninguém anotou quantas arrobas baixaria no peso, nem quantos países iria conhecer, na fantasiosa viagem por terras imunes à doença.

Não houve a renovação do compromisso de controlar o consumo, economizar dos salários para no Natal,  flanar de carro novo.

Somente com mais 24 módicas parcelas para pagar, com os  juros camaradas que o benevolente gerente do banco havia prometido.

Quem pensava desobrigado de sacrifícios, cumpre  penitências pelo que nunca foi prometido.

As proibições não bastaram para o opressor mostrar seu domínio.

A mudança não é só no que não é permitido fazer.

O tributo é progressivo, cumulativo, sem prazo de prescrição.

Tão bem elaborado que sequer prevê sanções por não pagamento.

Pelo simples fato de não oferecer alternativas numa existência sã.

Sem que fosse percebida, surgiu a obrigação de estudar gráficos e de acompanhar o crescimento de implacáveis números. Muitos já são capazes de fazer previsões acertadas, sem margens para pontos fora das curvas.

Fazendo valer o que é pago à Netflix, assistir os 60 capítulos da história de Maria Magdalena contada por mexicanos, todas as séries espanholas e com suficiente crédito para zerar os filmes indianos e tempo de sobra para conhecer os turcos.

Quem haveria de dizer que assistir as lives de famosos artistas exigiria tanto sacrifício?

Não se contava que o efeito insular conhecido por Brigitte Bardot, ou outra beldade mais contemporânea, pudesse ser aplicado ao show business.

Qual a graça do último show de Caetano, sem viagem em turbulento voo que sai de madrugada, sem hospedagem  no cinco estrela que cobra de diária, os olhos da cara de uma vaca PO e sem agradecer à  interferência de algum amigo influente para descolar o quase impossível ingresso. De camarote?

Uma temporada na ilha paradisíaca e deserta, em formosa companhia, nada vale, sem plateia pra ouvir a estória, depois.

A quem iremos contar essas aventuras solitárias, se até os netos terão as deles pra relembrar?

E memória por muito mais tempo.

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Penitente Maria Madalena – Caravaggio (1595)

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