24 de abril de 2024
Memória

PROMESSA DE AVÔ

Meus avos, meus pais e eu (1937) – Frida Kahlo – Museu de Arte Moderna, MoMa, Nova Iorque


Só um motivo pra lá de justificável para suspender, por algumas horas,  o isolamento voluntário que não completara ainda o segundo mês de tantos que viriam depois.

Algo muito especial que conseguisse  vencer a inércia rendida, a preguiça forçada  e o medo  da aproximação das pessoas, por mais inofensivas e queridas.

Nada mais justificável que o tão planejado e aguardado mega aniversário de quarenta anos da primogênita, resumido a um almoço em petit comité para sete pessoas.

Uma terça-feira promovida a domingo, em calendário de trinta feriados por mês.

O número de convidados não configurava uma aglomeração, mas foi neste exato termo, pensado e usado pelo neto de quatro anos, ainda na calçada, com jeito de quem não iria entrar, ao perguntar  quantos eram  os convidados.

Convencido de não estar cometendo crime, à medida que o distanciamento ia sendo relaxado e as cenas de terror repetidas nas TVs, esquecidas, a certeza que chamadas de vídeo, lives e outras modernices  apavorantes, não inibiram a força do contato epidérmico.

Oportunidade sem igual para  esclarecer dúvidas e situações que o relacionamento remoto podem ter provocado.

Que sirva de alerta aos avós brincalhões.

Os sub 5 podem levar muito a sério, o que é dito nas melhores e carinhosas intenções, nos telefonemas cheios de saudade.

O elogio na tela facetime do smartphone, que a turminha parecia estar bem.

Bonitões como sempre acham os avós.

Fortes. Crescidos.

Tão grandes que não seriam reconhecidos  num encontro casual nas ruas (do shopping, o único lugar possível de passar por  eles).

Não se pode imaginar como eles decifram  a linguagem falseada dos adultos.

Só a trégua na guerra cruel foi capaz de colocar em pratos limpos, antes do bolo da aniversariante ser partido, desentendimentos acumulados e ainda não  esclarecidos.

Num descuido da vigilância sanitária materna, a chance de um abraço apertado e de ouvir na vozinha, cheia de sentimentos, ao pé do ouvido, um pedido.

Você promete?

Um turbilhão de pensamentos e as várias hipóteses do que aquele ser grudado no peito, podia esperar de um idoso, com cabelo e barba por fazer há semanas,  do grupo de alto risco, nos seus quase setenta.

Bicicleta, não era.

Foi promessas cumprida no último aniversário.

Alguma viagem?

Essas  são  caronas, sem participação ativa na escolha dos destinos e datas.

Outro pernoite na casa da vó?

Nem precisa, a agenda pós-pandemia  estava aberta pra a volta dessas alegrias.

Ao revelar a necessidade do que tanto precisava ouvir, a inversão da ordem natural dos acontecimentos gera a dúvida.

Ou ele já sabia o que é Alzheimer, ou é vontade de parar o implacável  ciclo da vida.

Vovô, você promete que nunca vai se esquecer de mim?

Raízes (1943) – Frida Kahlo – coleção particular

***
O quadro “Raízes”, foi arrematado em 2006, por  5,6 milhões de dólares em leilão na Casa Sotheby’s, em Nova York.

Publicação original em 4/5/2020

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