23 de abril de 2024
Coronavírus

PROSA DE POETA

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Napoleão Veras brindou seus amigos e seguidores nas redes sociais, com uma prosa que revela o dia-a-dia de um poeta  em tempos de pandemia.
O TL sente-se honrado em romper este isolamento


DISTANCIAMENTO SOCIAL


Enquanto espero o tempo passar, conto horas como quem cata as contas de um rosário enorme, agora o quarto, logo a sala, voltar ao quarto, banheiro, quarto de novo, cozinha, geladeira, escritório, pego um livro, abro o note, o celular, entro no zap, autista digital confesso, cofio a barba, vejo no espelho, é a maior dos últimos 50 anos, cresce selvagem como um mimo da natureza, acastanhada aqui, branca ali, vige como está branca, enfim liberta de barbeadores e prestobarba, mais velho, hein? (odeio essa palavra), preciso debastá-la, não, melhor vê até aonde a bicha vai, o banho -espero- será salvo pelo gongo da meia-noite, escovou os dentes? claro, é a dignidade, refeições? claro, as necessidades todas ok, troque a bermuda, amor, abro o livro Dublinesca, Enrique Vila-Matas passeia em Dublin, no Bloomsday, e Ribas recita enigmático:

Que é um fantasma? – pergunta Stephen. Um homem que se há desvanecido até ser impalpável, por morte, por ausência, por mudança de costume.

Estremeço.

O telefone chama. É ele, Volontè, como todos os dias. Imagino o poeta mascarado, peiado, sem o doce e o sal do centro da cidade. Cantamos Linha de Passe, Transversal do Tempo, Mestre-Sala dos Mares, Bandalhismo (meu coração tem botequins imundos…), nos despedimos de, Aldir Blanc, quantas noitadas, quantos amores. Choramos.

Troco de canal. Um homem multimídia assobia e chupa cana é vero.

‘Todas as mulheres do mundo’ está de volta. Não, Leila Diniz não voltou, claro, agora é a gazela Sophie Charlotte. Linda. Delicada a ponto de romper-se. Cara de desamparo. Adoro. A galinhagem a mesma. Paulo José não tinha a testosterona de Emílio Dantas/Paulo. Evidente. Um animal sexual. Abismado em paixões. Volúvel como os adictos dessa doce droga. A caça que não cansa. A filha, a mãe, a amiga, a vizinha, a doidinha, a mulher do chefe, a branca, a negra, a gordinha, a linda, a nem tanto, ‘uma… com qualquer uma’ – a máxima de conquistador. A força dramática do predador. As mulheres do mundo num corpo a corpo com os homens do mundo, chegando junto, aprenderam muito, aprenderam tudo nesses anos, aprenderam mais até, superaram-nos em disciplinas novas, no poliamor, p.ex, soltas, suaves, sem pecado.

Às 3 da matina volto ao YouTube. Será que chegarei junto a  Ribas nas 24 horas desembestadas de Ulisses por Dublin, ou seguirei aqui brincando com essa joça digital de ermitão modernoso varando mais um dia de distanciamento social? Dou de cara com uma luta que me faz esquecer que é madrugada: Joe Frazier x Muhammad Ali, a primeira das 3. Revejo o balé, a elegância de Ali versus o potente atarrancado  Frazier, o jogo de pernas, os desvios de cabeça, até o histórico cruzado de esquerda de  Frazier que entra finalmente, levando o edifício musculoso à lona.

E depois a sua declaração que ficará  por saecula saeculorum:

A força que usei para aterrar Ali era pra derrubar uma cidade’.

Passo pra dita luta do século, Muhammad Ali x George Foreman. 12 rounds? Por aí. Dois animais se digladiando. A plateia urrando, torcendo por Ali , que recusara lutar no Vietnam, mas que não dá um passo à frente, mantendo-se  na defensiva por todo o combates, rente às cordas.

Num segundo, quando já se contava com sua iminente derrota por pontos, acerta um golpe na cabeça de Foreman, e logo dois  jabs elétricos na ponta do queixo, que levam a nocaute. Delírio coletivo.

Quando finalmente adormeci madrugada funda, sonhei com a luta. No lugar de Ali , era  uma multidão ali nas cordas, exausta, sofrendo há dias, meses, e não havia jeito de acertar um jab no queixo do  outro.

                Napoleão Veras

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