28 de março de 2024
Gente que é notícia

Renascimento: “Há uma Gloria antes e outra depois do tumor”

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No Caderno ELA do Globo 

A mulher que ficou famosa por subir grandes montanhas atrás de boas histórias acaba de escalar uma que deixaria até o Himalaia pequenino. Há pouco mais de um mês, Gloria Maria, uma das principais jornalistas da televisão brasileira, desmaiou e descobriu um tumor expansivo no cérebro. Sem alarde, fez uma cirurgia delicada e passou a encarar sessões diárias de radioterapia.

“Segundo os médicos, se eu não tivesse desmaiado, morreria em dias”, diz ela, com o vozeirão de sempre, embora um pouco ofegante. “Serão 45 dias de rádio, mais 45 de imunoterapia. E em março, já posso pular de bungee jump”, vibra, num tom mais sereno do que o habitual.

Esta é a primeira entrevista de Gloria desde a cirurgia. Ela me recebe em sua casa, na Gávea, com um caftã azul comprado em uma de suas viagens pelo “Globo repórter”, programa que apresenta desde 2010, e uma garrafa de Água das Pedras, água com gás portuguesa na qual é “viciada”. Com uma tranquilidade ímpar, percorre os cômodos, reconstruindo o trajeto do dia em que desmaiou. Fala como se apresentasse uma de suas matérias, não como quem narra a própria fatalidade. E, se insisto na gravidade do tumor, sorri: “Não sou coitadinha. Detesto vitimismo”. A postura é a mesma quando o assunto é o racismo ou o processo de adoção das filhas Maria e Laura, hoje com 11 e 9 anos: “O pior preconceito é o que está na gente, não no outro”, diz.

Neste Natal, Gloria Maria Matta da Silva, a leonina que nasceu em Vila Isabel, no mesmo dia de Nossa Senhora da Glória, diz ser uma nova pessoa e ainda mais grata a Deus.

“Eu renasci. Tive o privilégio de viver outra vida depois de tudo que já aprontei.” A seguir, os melhores trechos da conversa.

A QUEDA

“Fui a um jantar na casa da (jornalista) Silvia Sayão, em homenagem ao Sérgio Chapelin (âncora). Voltei uma e pouco da manhã, com um produtor do programa (“Globo repórter”). Como não tenho o hábito de comer em festa — acho ruim estar cheirando a comida quando alguém cumprimenta, sabe? —, cheguei em casa com fome. Comemos um pedaço de presunto

de Parma, eu o deixei no portão, ele pegou um Uber e foi embora. Depois disso, pela cena, acho que entrei, fui à geladeira, peguei uma garrafa d’água e, quando saí para a copa, desmaiei. Bati com

a cabeça na quina da mesa de vidro e, não sei como, cai, mas levantei. Subi as escadas, fui para o meu quarto, tirei a roupa e deitei. Era de sexta para sábado. De manhã, tipo 8h, acordo com a minha filha Laura: ‘Mamãe, mamãe, você vomitou?’. Quando olhei a cama era um mar de sangue. Joguei quatro travesseiros fora.”

O DIA SEGUINTE

“Eu botava a mão em mim e não sentia nada. Nisso, a Lucia, minha funcionária, grita: ‘Dona Gloria, o que houve?’.

A geladeira estava aberta, a garrafa de vidro caída no chão, sangue. Até que coloquei a mão na cabeça e senti o corte: ‘Tá aberto’, pensei. Como não tenho clínico geral, liguei para a minha ginecologista, que me mandou para a (clínica) São Vicente. Lá, eles costuraram e começaram a fazer exames para ver o que tinha provocado o desmaio. Descobriram

um tumor de alta expansividade, algo que pode matar em semanas. Eu escapei porque, em volta dele, criou-se um edema e uma inflamação que me fez desmaiar. Se eu não tivesse desmaiado e aberto a cabeça, estaria morta agora.”

O DIAGNÓSTICO

“Fiquei cinco dias no hospital. Exame, ressonância, exame, ressonância. Saí de lá e fui fazer uma máscara sob medida, para encarar a radioterapia sem me queimar, coisa de cinema (mostra um vídeo no celular em que usa a tal máscara). Terminada a função, chego em casa, sexta à noite, acabada. Duas horas da manhã, toca o telefone, número desconhecido. Achei que fosse um desses trotes de sequestro, mas era o (neurocirurgião) Paulinho Niemeyer. ‘Estou indo aí te ver’, ele disse. ‘Espera, me ver como? São duas da manhã, eu tô exausta’. Ele insistiu: ‘Gloria, seu caso é cirúrgico. Você está com uma bomba-relógio. Tenho até as seis da manhã de segunda-feira para te operar’. Olhei para o lado e pensei: ‘Seja o que Deus quiser’. Tive uma sensação de tranquilidade que nunca havia sentido. Não chorei. Uma sensação de que, pela primeira vez, eu não precisava pensa

FRAGILIDADE

“Eu já experimentei de tudo, cobri guerra, subi o Himalaia quatro vezes. Mas fragilidade física eu nunca tinha experimentado. Pensei: ‘isso é a vida’. Estou sendo privilegiada por Deus para entender um pouco mais sobre minha trajetória na Terra.

A gente passa a vida toda procurando respostas. Agora vou perguntar o quê? ‘Tô ferrada?’, ‘Vou morrer?’. Nenhum médico é Deus. Ninguém sabe o que vai acontecer. Em vez de pensar no tamanho da trolha, eu só pensava ‘quem criou essa merda, vai resolver’. A gente vai para a terapia, procura guru, bruxa, Cristo. Mas as respostas não estão aqui, estão lá (aponta para cima).”

A CIRURGIA

“Chamei as meninas e expliquei: ‘vocês lembram que tiveram que tirar as amídalas? Então: mamãe caiu, fez um dodói na cabeça e vai fazer uma operação parecida. Elas me salvaram. Enquanto eu ia de uma ressonância para outra, faziam as perguntas mais absurdas, falavam sem parar. Entrei no centro cirúrgico às seis da manhã de uma segunda-feira, fiquei seis horas na mesa de operação. Quando acordei, não senti nada, só pensei: ‘estou careca’. Botei a mão na cabeça, senti o turbante (de gaze). O Paulinho disse: ‘Você é tão cagona, que o corte é mínimo, nem se nota. Pode botar a mão no cabelo que ele está intacto’. Nunca conheci uma pessoa como ele.

É um gênio, me devolveu a vida e a alma. Disse: ‘amanhã, quando você for para o quarto, lave o cabelo com seus xampus preferidos. Quero te ver linda’. Pensei: ‘esse cara é louco, me enfiou uma peruca, está me enganando’. Mas era verdade. Quando ele chegou para me ver, eu estava impecável. Dois dias depois, tive alta.”

O MILAGRE

“Minha sensação é de que se abre um portal. Ou você entra nele, sem saber qual vai ser a saída, ou você para aqui e morre. Eu fui e saí transformada. Comecei a ver máscaras caindo, uma a uma. Pessoas que pensei que estivessem do meu lado, não estão. E outras, que nunca imaginei, se prontificaram em ajudar. Teve gente da minha família perguntando: ‘quem está administrando os bens da Gloria? Ela é uma incompetente com dinheiro’. Mas também houve coisas maravilhosas, verdadeiros anjos da guarda. Foi a experiência mais transformadora da minha vida.”

AS MUDANÇAS

“Há uma Gloria antes do tumor e outra depois. Eu, que raramente acordava antes das 10h, passei a levantar às 4h45m. Ninguém sabe explicar o motivo. Falei para o Paulo que ele foi perfeito, mas fez alguma besteira que me programou para acordar todo dia nesse horário. Também acabou minha impulsividade, estou calma. Além de estar de café tomado às 7h, já tenho a vida organizada até março de 2020. Antes, era o oposto: desorganizada, chegava atrasada em todos os compromissos. Agora sou a primeira a chegar. Parece que minha energia toda se renovou, reorganizou. Desde que nasci, nunca tive um momento de tranquilidade, sempre corri muito atrás. Agora estou em paz. Até com a dieta relaxei. Sou louca por um bolo de milho com coco, um outro de aipim com tapioca e uma broa que vende aqui perto mas, ao longo da minha existência, só tinha comido uma vez. Agora, como TODOS os dias no meu café da manhã. Devo estar uns quatro quilos mais gorda. Mas não estou preocupada. Estou sentindo um prazer que você não imagina.”

AMOR

“Sou discreta com a minha vida pessoal, mas tive várias histórias de amor. Fui casada no papel e quase ninguém sabe. O Eric (Auguin, empresário), francês com quem fiquei oito anos, por uma dessas coincidências da vida, está aqui em casa agora. Nos separamos há mais de 30 anos porque ele queria filhos e eu não. Ele se casou de novo, teve uma filha. Nesse tempo todo, só nos vimos três vezes: uma no País Basco, uma em Paris e outra em Saint-Tropez. Um mês antes dessa história do tumor, ele me escreveu. Disse que o Brasil era o lugar da sua vida e que havia decidido se mudar para cá. Eu disse: ‘Poxa, que legal, pode ficar em casa’. No meio das ressonâncias, no hospital, recebi a mensagem: ‘Tenho 15 pares de sapato. Levo todos?’. Bom, tive alta sexta, ele chegou domingo, dia 17, sem saber de nada. Tomou um banho, a gente sentou para conversar e eu contei tudo. Eric levou uns cinco dias para acreditar. A maior paixão da minha vida volta justo nesse momento. O que será que isso quer dizer, Senhor? As meninas perguntam: “Mamãe ele é seu namorado, seu marido?’. Abrem a porta do meu quarto toda hora, achando que vão pegar algo. Olha a situação. Ele lindo, lépido e faceiro e eu aqui com um cateter. Como explicar isso? É o renascimento.”

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