28 de março de 2024
Memória

SAUDADE EM QUARENTENA

El niño enfermo (1886) – Arturo Michelena – Galeria de Arte Nacional, Caracas, Venezuela


Memórias guardadas nas caixas das  lembranças, estão cheias de recordações de tempos de distanciamento dos amigos, e isolamento dos sentimentos e emoções.

Das doenças de menino e das  viroses comuns da infância.

Das manhãs e tardes intermináveis na cidade preguiçosa, sem telefone, sem TV e  sem outros perigos.

Das longas viagens pelas ondas curtas, à procura de sons menos dissonantes e de chegar cada vez mais longe, pra depois da Rádio Central de Moscou, onde o proibido tinha  gostinho especial.

Da dieta sem comida carregada.

E da desconfiança infantil que tudo que Chico Preto trazia no balaio da feira, não restava dúvida, carregado  era.

Do luxo de lanchar biscoito cream cracker. E de tomar guaraná champagne, nos dias de febre.

De não poder ver os montes de gibis que Seu Zé Gazeteiro trazia no PN, do Recife, toda sexta-feira.

E vendia no quarto da pensão de Dona Regina, tia de Pipiu e Beto, espalhados em cima da  cama e pelo chão do quarto, transformado em vitrine, e na melhor cigarreira do mundo.

Do enjoo de tanta canja e de tanta sopa, ralas.

Dos supositórios de cibalena que enganavam o termômetro.

Das proibições de qualquer esforço físico.

De chegar perto de uma bola.

De olhar pra bicicleta.

De sair da cama para nada mais que as necessidades.

De andar sem pressa. Arrastando os pés até o banheiro, estrategicamente construído nos fundos da casa.

De não subir escadas.

Nem batentes, se a epidemia da vez era papeira, que quando descia, o menino nunca seria homem de verdade.

O medo de virar um zebúzios, pedrodacalçapreta ou outro macho-fêmea saído do armário paroquial, era a garantia do repouso absoluto.

De tomar banho, sem molhar o cabelo, em tempos que shampoo não havia, da água pouca de sempre, trazida em galões, ombros, trens e latas de querosene.

Fria, doce e gelada, do Piquiri.

Dos primeiros sinais que o mal estava indo embora, com a chegada das visitas desconfiadas, procurando pegar só um pouquinho da doença.

Da permissão, até que enfim, de ver o movimento da rua.

O que havia deixado de fazer, e perdido de ver; tempo e pessoas que passaram.

Da balaustrada do alpendre; qual sentinela, em sua vigia.

Da volta às aulas, às santas freirinhas e à descoberta que sem elas, a vida não tinha tanta graça.

De pensar que depois que o progresso, o futuro e as vacinas chegassem, aqueles tempos de sofrimento não voltariam nunca mais.

E trouxessem tanta saudade.

 

La joven madre (1889) – Arturo Michelena – Galeria de Arte Naciobal, Caracas, Venezuela


(Este texto, publicado em 20/04/2020, sofreu alterações)

One thought on “SAUDADE EM QUARENTENA

  • Geraldo Batista de Araújo

    Texto bom pra danado
    Comida carregada é lá de nóis: peba, tatu, guiné, e carne de porco. Viva a Medicina e além de salvar vidas, nos deu bons escritores.

    Resposta

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