SONHO QUASE PREMIADO
O pensamento que a vida pode mudar num passe de mágica, na sorte grande de um polpudo prêmio, foi esquecido nos meses de chumbo da pandemia, quando todos faziam fé em outra imensa loteria, sem bilhete premiado.
Sonhar com uma vida diferente, intocados pela destruição, era tudo que se desejava.
De novo, com a volta dos cheiros, sabores e cores, o despertar do sonho mau, acorda as ilusões das mudanças sem esforços.
Lembranças de um final de expediente do médico já na meia-idade, de uma sexta-feira, quase noite.
Depois do último paciente, um toque discreto na porta.
Com pedidos de desculpas, entra um senhor idoso, magro e baixinho. Aparência frágil. Óculos fundo de garrafa e uma pasta surrada debaixo do braço.
Parecia pessoa muito educada, e de respeito.
Esperou que todos saíssem porque tinha um assunto que podia ser de interesse mútuo, a tratar.
Havia perguntado à secretária de quem era o único carro que restava no estacionamento.
Tinha chegado atrasado para vender uns bilhetes da loteria a um colega de clínica, seu freguês de longa data.
De saída, percebeu a tremenda coincidência: os números da última série de bilhetes que faltava vender, eram os mesmos da placa do carro. Voltou para provocar mais um encontro com a sorte, seu destino e missão .
Mesmo para quem nunca tinha ido além de uma fezinha na mega-sena, a conversa muito interessava.
Mais ainda quando o distinto senhor começou a contar como os maiores prêmios vendidos por ele, tinham sempre um detalhe parecido.
E o surpreendente número de colegas, a maioria conhecidos, que já haviam embolsado grandes somas.
Convencido pelos argumentos e pela ambição, a compra incluiu dezenas, centenas e milhares.
O sonho de uma bolada contada como certa, incluídos planos de como gastar e investir, durou uma noite de sono inquieto.
Por pura sorte, no dia seguinte, o encontro com o personagem secundário do conto de fadas, materializado no colega “freguês” do cambista.
Que nunca havia arriscado um tostão sequer no jogo, nem tinha a menor noção de quem era o mercador de fantasias.
A sorte vinha em dose dupla: o valor da compra tão alto, ainda em tempos de cheques, não pôde ser pago em espécie. O fim-de-semana salvador, foi a chance de sustar a ordem de pagamento na abertura do expediente bancário.
Passados dias para o sorteio, nenhuma reclamação pelos voador abatido na boca-do-caixa-do-banco.
Os bilhetes continuavam válidos e concorrentes.
Na data da apuração , alívio pela não premiação.
Aquele prêmio, se ganho, teria sido por direito, moralmente aceitável?
(Este episódio lotérico correu originalmente neste Território Livre, em 23/04/2019)