VALEI-NOS, RAINHA DA PAZ
Depois de longo período maneta, sem ter como receber as generosas oferendas dos devotos, a mais festejada imagem da rainha do mar havia sido recolhida para restauro.
Os degredados filhos de Eva, pessimistas, já contavam com a ação deletéria da burocracia oficial, de conhecida ineficiência, para justificar demora na recuperação das chagas causadas pelas intempéries que o salitre não deixava cicatrizar, e mutilações pela sanha dos vândalos.
Branca e radiante, esculpida em pedra calcária, inoxidável, a nova estátua, uma oferta de grupos religiosos, com quase nenhum apoio governamental, estava de volta, antes do esperado.
Recuperada sem dinheiro público e cedida, de papel passado, à guarda do governo, esperava-se garantida a integridade física, de quem, da outra dimensão, nos livra dos perigos do mar, dos malfeitores da terra e alivia as dores de amor.
Seu retorno triunfal foi seguido da chegada da maior de todas as pestes, obrigando os fiéis ao confinamento domiciliar.
Quem se aventurasse a um simples passeio sobre areias brancas, ou revigorante banho, corria o risco de ter de correr também da polícia.
No fim do mês de aniversário, um presente sem bilhetes nem rastros, deixado não se sabe por quem, é mais um mistério a ser decifrado pela esfinge santa.
A estátua de Iemanjá amanheceu da cor de ébano, não por conta de malfeitores, é elementar e evidente, a constatação.
O trabalho executado com esmero e, por que não dizer, devoção, revela uma guerra secreta que avança pelos terrenos da praia-do-meio-do-caminho.
Na Umbanda, a rainha é branca, como as virgens costumam ser representadas.
Para o Candomblé, tão negra como a maioria dos seus beatos, em alvas vestes.
É hora de mais uma prece para que um infinito amor não seja dividido, nem se renda ao conflito racial.
A nós volveis, bondosa mãe. Suplicamos, gemendo e chorando, neste vale de lágrimas, que ilumine seu rebanho.
Ó Clemente, Ó Piedosa, Ó Doce Sempre.
De qualquer cor, continue a derramar sobre a cidade aos seus pés, suas graças e bondades.
Que o seu perdão seja concedido a quem crê no arrependimento e nos seus poderes.
Que a mansidão do movimento das marés alcance todos os lares da cidade-presépio.
Que os desesperados tenham seus corações apascentados.
Que os enfermos encontrem cura.
E que todos nós, agasalhados sob seu manto, possamos ser purificados nas águas sagradas do mar.
Vida, Doçura, Esperança Nossa, Sereia das Ondas, Rainha, Janaína, Senhora, Mãe, Iemanjá.
Traga-nos a paz.