15 de novembro de 2025
Crônicas

O Cebreiro: Meu primeiro dia no Caminho de Santiago

Era o ano de 2017 e fui levar Renata na casa dos seus pais, lugar de onde partiriam para o aeroporto e tomariam um vôo até Madrid. Eles estavam prestes a fazer uma peregrinação de quase um mês pelo Caminho de Santiago, na Galícia. Ao nos despedirmos, ouvi da minha sogra a seguinte frase: “Esta é uma viagem que você deveria estar conosco”. Até hoje, penso que ela falou por educação, afinal tratava-se de um programa que o núcleo familiar planejava há vários anos, e eu namorava com Renata há apenas alguns poucos meses. Pois bem, era somente isso que eu precisava ouvir. Ao chegar em casa, corri pro computador para comprar uma passagem, porque decidi que meu próximo destino seria a trilha sagrada do Caminho de Santiago.

Após alguns dias adiantando aulas e resolvendo assuntos pendentes, embarquei em um voo de Natal para Lisboa, e finalmente de Lisboa para Vigo, na fronteira noroeste da Espanha. Renata já estava caminhando há mais de 10 dias com seus pais Vicente e Sônia, e suas irmãs Deborah e Fernanda, quando avisei que estaria chegando somente no dia seguinte para minimizar o efeito surpresa. Mesmo assim, me sentindo um pouco cara de pau (só um pouco) por me intrometer em uma íntima viagem. Planejava alugar um carro para encontrá-los, mas ao chegar ao balcão da locadora, percebi que havia perdido nada menos que minha carteira com cartões de crédito, provavelmente, em um café no aeroporto de Lisboa ou dentro do avião para Vigo. Para minha sorte, e lá vai a dica, deixo sempre meu passaporte e dinheiro em espécie na bagagem de mão.

Com a impossibilidade de alugar o carro, decidi pegar um táxi de Vigo até Las Herrerías. Foi uma decisão onerosa, mas a única possível naquele momento em que, de toda forma, os cerca de 260 km pela rodovia A-52 já estavam planejados. Cheguei em Las Herrerias após três horas de viagem conversando sobre música e sobre as pequenas cidades que passávamos com o falante e gentil Sr. Ignacio, meu taxista sortudo que parava para fumar a cada meia hora. Antes de chegar no meu destino já nem lembrava do perrengue de boas vindas horas atrás, em Vigo.

Quando cheguei, fui recebido por uma cidadezinha bucólica, com estábulos antigos e coberta por uma neblina suave que tornava tudo ainda mais pitoresco. A espera pelo reencontro com Renata e sua família, que parecia interminável, foi finalmente recompensada quando a encontrei se protegendo da garoa com um guarda-chuva cor-de-rosa na frente da pousada, e um sorriso que me dizia: “você é muito maluco”.

No dia seguinte, partimos para O Cebreiro. Nestes primeiros passos, éramos um quarteto; eu, Renata, Deborah e Vicente. Caminhamos uns 30 minutos até o primeiro “pueblo” onde resolvemos parar para tomar café. A trilha é sinuosa no início e cheia de ladeiras, em uma estrada estreita e abarrotada de esterco de cavalo. Era um dia iluminado, daqueles que confirmavam mais uma vez a minha teoria de que a luz na Europa é mais bonita do que em qualquer lugar.

Após cerca de três horas de caminhada, começamos a avistar O Cebreiro, com seu charme mediaval que fica no alto de uma montanha. As construções de pedra com telhados de palha em estilo celta pareciam ter saído de um livro de Tolkien, e à primeira vista, fazem o camarada refletir sobre os costumes daquela época. Caminhamos pelas ruas estreitas de paralelepípedos, ladeadas por casas antigas, até chegar à igreja de Santa María la Real, uma construção misteriosa que guarda segredos milenares.

A atmosfera era mágica, e a hospitalidade dos locais aquecia nossos corações, apesar do friozinho da manhã. O Cebreiro foi uma revelação para mim. A vista panorâmica das montanhas circundantes, cobertas por uma leve neblina matinal, era de tirar o fôlego. As paisagens deslumbrantes e a sensação de estar em um lugar onde o tempo parecia ter parado, tudo contribuía para a atmosfera única daquele vilarejo. A tranquilidade do lugar era interrompida apenas pelo som dos sinos da igreja e pelo murmúrio dos peregrinos que, como nós, se surpreendiam com aquele lugar histórico.

A igreja guarda um cálice que foi palco de um milagre eucarístico no século XIV. Além disso, as “pallozas”, casas redondas de pedra com telhados de palha, são típicas da região e dão um charme especial ao vilarejo. Caminhar por suas ruas é um passeio pelo tempo. Uma imersão na história e na cultura galega.

Depois de cerca de uma hora e meia naquele lugar, resolvemos seguir nossa peregrinação. No Caminho de Santiago as coisas acontecem da seguinte forma: você monta seu roteiro, você decide a hora de levantar da cama, a hora de seguir viagem, você decide quanto peso quer carregar nas costas, você decide a hora de descansar, onde vai se alimentar e onde vai dormir. Durante todos os dias, faça chuva ou faça sol, você precisa seguir adiante. Tudo isso, somado às dores do percurso, resulta em muita reflexão sobre a vida.

Enquanto saímos dO Cebreiro, algo curioso aconteceu. Um solitário cachorro grande de pelo preto começou a nos acompanhar. Caminhou conosco até o próximo vilarejo, como se fosse nosso guia silencioso. Aquilo me intrigou e confortou ao mesmo tempo. O cão parecia ser um guardião do caminho, uma presença reconfortante que tornava nossa jornada ainda mais serena. Deu vontade de trazer o danado comigo.

Os passos no Caminho de Santiago trazem muitas reflexões filosóficas, religiosas e culturais. E a companhia de Renata e sua família tornava tudo ainda mais significativo. Refleti não só sobre o caminho, mas sobre mim mesmo. Quando se aprende a suportar dores físicas, somadas ao peso de uma mochila nas costas que deveria conter somente aquilo que você realmente precisa, o caminho mostra que, mesmo acompanhado, você está sozinho no mundo. Essa solidão aos poucos começava a se transformar em uma espécie de companhia de mim mesmo, até então desconhecida, e este pensamento revela muito mais do que parece. Você sente uma necessidade incessante de se tornar uma pessoa melhor.

Os perrengues e dificuldades que passei na vida se mostraram pequenos diante da grandeza das reflexões daquele primeiro dia. Nos dias seguintes, perdi muitas coisas, a começar pelas unhas dos dedões do pé. Contudo, as mensagens trazidas pelo vento com o cheiro da floresta e das montanhas eram como uma bateria carregada de energia e vitalidade em forma de palavras. Elas diziam: “Viver é bom demais!”

O Caminho de Santiago não é apenas uma trilha de peregrinação; é uma jornada de autoconhecimento, de encontros e reencontros com a paz interior, seja você cristão, budista, ou muçulmano. Para mim, foi a oportunidade de estar ao lado de pessoas queridas, de enfrentar imprevistos e de encontrar beleza nos momentos simples. Aquele simpático cachorro de pelo preto, os vilarejos bucólicos e a neblina que nos acompanhava eram apenas parte de um todo que não sairá da memória.

E assim, seguimos adiante, passo a passo, vivendo intensamente cada momento, cada paisagem, cada conversa. No final das contas, o que realmente importa no Caminho da vida, são as conexões que fazemos, as histórias que compartilhamos e as lembranças que levamos conosco. Deixando tudo que não precisamos para trás.

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