A BOA FORTUNA
Deusa romana do azar e da sorte, do acaso e do destino, Fortuna encheu a vida do menino, de sonhos.
Que os desejos abençoados do avô carrancudo, um dia, se tornassem realidade.
Nem o Siri que sabe tudo, consegue calcular a distância entre os avós de hoje e os das nossas lembranças infantis.
Seres sisudos, versados apenas em poucas palavras, na língua dos pequenos.
Por timidez, costume ou mais o que, homens de conversas curtas. Só falavam quando provocados.
Alguns até interagiam um pouco mais. Há relatos de afagos e até de beijos nos cocurutos.
Os miúdos eram iniciados no ritual de estender a mão nunca apertada, pedir a bênção, segurar a do interlocutor por segundos e beijar a manzorra.
– Deus te abençoe.
Com variações.
A bendição podia tanto ser delegada ao santo da devoção, como acrescida de outros sentimentos.
Apesar do apelido pueril que virou nome de Antônio, Totô Jacintho mantinha a tradição. E a cautelar separação que os americanos resumem e definem muito bem, generation gap.
Com fama de ser muito rico (e era mesmo), podia dar-se ao luxo de algumas outras excentricidades.
A começar pela resposta ao único cumprimento que os descendentes da segunda geração ousavam oferecer.
–Deus te dê boa fortuna.
Desejo a ser entendido como sucesso, destino, riqueza, fartura, bens materiais ou simplesmente, sorte.
E se o filho de uma das três filhas aparecesse com madeixas de cantor de iê-iê-iê, além da bênção suspensa, a ordem de ir ao barbeiro (corte sem patrocínio) e de voltar para completar o ritual.
Na carência de bancos, financiava empreendedores e abria crédito para quem concordasse em pagar juros. De 6%, não escorchantes ao ano.
Senhor de extensas plantações, fomentava a produção agrícola regional pela intermediação da compra e venda do ouro branco.
Transitava entre pequenos, médios produtores, grandes usineiros e gigantes dos trustes estrangeiros.
Andava sempre com uma surrada pasta de couro, abarrotada de maços de dinheiro. As notas, meticulosamente arrumadas, cabeça com cabeça.
Vestia roupas claras e folgadas.
Calças de linho S 120, brancas e engomadas. Cordão de ouro, prendendo o Patek Philippe na algibeira, alpercatas e inacreditável camisa de pijama. Com debrum e tudo.
Os critérios para acesso ao seu crédito eram rígidos.
Sob nenhuma hipótese, emprestava qualquer valor que fosse, a quem usasse cabeleira mais longa que à máquina zero, bigodes de pontas caídas e costeletas.
Que procurassem outro agiota aqueles que ousavam trocar os chapéus de massa ramenzoni por bonés e as de mesclita pela abominável moda das camisas de meia, depois rebatizadas de malha.
Comedido nos gastos, de ofício e exemplo, sabia dar valor ao dinheiro que arriscava somente nas cartas do baralho, em rodadas de relancinho com os amigos mais chegados.
Sinais exteriores de riqueza, só os carrões.
Dos Plymouth e Buick aos nacionalizados Simca Chambord e Galaxie LTD que nunca dirigia, por nunca ter aprendido.
Mão aberta só quando incorporado do espírito do Natal. Coincidindo com as vendas das safras, o final do ano era o tempo de repartir os lucros. Sempre uma bolada para cada filha e festas para os netos.
Pela inveja dos amigos, uma grana preta. Em valores corrigidos, uns cem dólares.
Abençoada boa fortuna.
(Publicação original em 04/10/2019)