2 de maio de 2024
Gastronomia

À MESA, COMO CONVINHA

 

Refeição de camponeses – 1642 – Antoine e Louis, Irmãos Le Nain – Museu do Louvre, Paris


A viagem de quase duas horas, cortando  paisagem tão árida quanto monótona, acabou em sede de isolamento e fome de retirante em pintura de
Portinari.

Na simpática estalagem de destino, o pedido de antecipação do check in antes da hora apontada na reserva,  foi compensado com a liberação das demais dependências até a arrumação do quarto.

Na alta estação pós-covid, tolerâncias com a verificação final não permitiam gentilezas.

Entre os chalés, sob frondosas acácias, o pequeno restaurante era acolhedor. E uma gratíssima surpresa.

De frente,  mas sem vistas para a praia de ventos que atraem marujos de barcos egoístas, a sala de repasto,  um enclave no território da Pousada dos Ponteiros.

Qual principado independente, Balica servia o desjejum, mas jejuava ceias e sopas, dispensando os jantares.

Então, que fossem bem aproveitados os almoços.

Enquanto o caçula, motivo da escapada para a comemoração natalícia, não chegava,  a única marca de malte, feliz coincidência com a de hábito, preferência e gosto, descia redonda.

À temperatura nem estúpida nem indolente, as loiras suavam,  pedindo acompanhamento no início da tarde ainda solitária.

E vieram à mesa, dados de queijo de coalho em crosta de tapioca e dedinhos  de polvo ao vinagrete, finos tentáculos, arrancados ao primo canto das sereias.

A carta de vinhos,  honesta e acessível aos bolsos de quem não liga para safras, desde que as uvas virem néctar, como os gatos de todas as cores caçam ratos comunistas, na China.

O cardápio resumido, a síntese da proposta de servir famílias em férias.

As escolhas começaram pelo tamanho das poções. Para casais e parelhas, ou quatro,  que servem até meia dúzia, contadas crianças comensais.

Do mar, camarões aportavam  em balsas de abacaxi, sobre ondas de  arroz picante, ou  disfarçado de bobó, afundeada em seus ingredientes.

Macaxeira, azeite de dendê e toda pimenta que não provoque lágrimas.

Da terra firme, as tentações para o pecado venial de se escolher qualquer manjar sem as bençãos da rainha das águas.

Carne de sol grelhada, ornamentada por lâminas do onipresente queijo de coalho, cebola caramelizada no mel de jandaira e feijão verde.

Quem quebrava a tranquilidade no comedor, era o bafafá.

Alcunha de baião de dois, completado em trio, na cadência da farofa de bolão.

Madame M., versada em áudios e mensagens telepáticas das redes sociais e exímia calculadora de  distâncias encurtadas pela velocidade, estimou bem o tempo para a chegada dos viajeiros às nascentes da BR 101.

Os abraços e beijos, confinados desde antes das vacinas, coincidiram com o pouso da  panela de barro e sua caldeirada, na mesa farta.

E divina.

Iguaria para ser louvada por Apícius e por quem mais, longe dos somatórios fúnebres, com um grito que só os italianos sabem dar, quando além de uma dolce vita,  nada mais lhes interessa:

Vaffanculo a tutti !

A Ceia em Emaús (1645) – Antoine e Louis, Irmãos Le Nain – Museu do Louvre, Paris


(Esta crítica gastronômica, com modificações, foi publicada em 13/07/2021, com o título “À mesa como convém em São Miguel do Gostoso”)

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