4 de maio de 2024
Memória

A REFORMA AO ESPELHO

A reprodução proibida (1937) – René Magritte – Museu Boijmans Van Beuningen, Roterdã.


Desde que foi adquirido, acompanhou de muito perto,  o amadurecimento do jovem casal.

Foi solidário.

A cada ruga apontada, compensava com uma mancha no próprio corpo.

O tempo foi passando e já sem luz, com algumas cicatrizes e pedaços retirados em um e outro canto,  chegara a hora da renovação.

Quem nele refletiu todas as idades, tentava iludir o implacável registro do passar dos tempos e da vida.

Os refletidos mudam com a moda.

Pintam os cabelos, disfarçam os vincos. Se profundos, preenchem-nos com substâncias químicas.

Fortalecem os músculos, aplicam cremes. Fazem plásticas.

Trocam as lentes dos olhos.

A verdade aparece. Reveladora e sincera.

Na falta de outro culpado para a indesejada transformação, sobra para quem, estático, apenas fez o que é sua natureza.

Por mais que escondam   evidências, sinais e alertas, eles projetam um resto de tempo que  não poderá ser  mais longo do que estava escrito.

Os ciclos da vida chegam ao fim. Para todos.

Maktub.

Um dia, tinha que acontecer.

A velha casa para se adaptar aos usos modernos, também pedia mudanças.

Os muros e portões, antes receptivos e aconchegantes, cresceram. Com a diminuição da urbanidade, tornaram-se hostis. Ganharam espinhos. Cercas, microfones, câmeras e até repelem os forasteiros a choque elétrico.

As salas, sempre pleiteando novos móveis de matéria plástica, imunes aos cupins, exigem mais espaço para as imensas telas de TV.

Sem mais ninguém pra tomar conta, aparelhos inteligentes e bancadas ergonômicas compensam a falta de vocação dos novos cozinheiros.

Na vez do banheiro, uma descoberta arqueológica  atesta seu tempo de serviço.

Na parede desnuda, algum pedreiro deixou, em tinta desbotada, marca e registro do exato tempo de trabalho prestado à família.

Clidenor – 27/10/1988.

Mesmo com tempo suficiente para aposentadoria pela nova lei da previdência, foi mais rápido apelar para a incapacidade física permanente.

Oxidado, o antigo espelho faz jus ao merecido descanso.

O falso espelho (1928) – René Magritte- MoMa, Museu de Arte Moderna, Nova Iorque

(Texto publicado em  22/01/2020, com o título: Espelho da Reforma)

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