15 de maio de 2024
Memória

A VOLTA DA ESCAFEDIDA

Medicina & Higiene (1907) – Gustave Klimt – Pintura no teto da Universidade de Viena, Áustria


Antes recebida com honras reservadas às celebridades, há três anos,
  quando chegou, ninguém soube, ninguém viu.

Não se esperava mesmo que a visita anual, depois de caída na rotina, fosse anunciada nas primeiras páginas dos jornais.

Daí a não merecer nem um cantinho, daqueles que informam a possível falta de peixe na semana santa, foi uma tremenda injustiça.

A quadra chuvosa atestada pelos meteorologistas já estava fazendo a alegria (clandestina) nas sangrias dos açudes e não se dava a mínima pra quem agitava os invernos desde que voltou a frequentar o pedaço.

Devia ter perdido o sotaque ou virado arroz de festa.

Não somente ela, as aparentadas que saíram dos mesmos grotões para conquistar as cidades, também não davam as caras nos noticiosos.

Com todas as atenções voltadas para uma superstar, não sobrava cientista algum para as devidas e convincentes análises e explicações.

Isolados observadores da vida em cativeiro e curiosos da entomologia constatavam não ser por falta de vetores .

A família Culicidae é numerosa.

Unida, continuava zoando os ouvidos mas há  mais de um ano não se viam carros fumacê em circulação.

Os guardas da malária, depois promovidos a agentes de endemias e vigilantes sanitários, deixaram de frequentar as residências.

As bromélias sem seus predadores naturais, nunca estiveram tão viçosas.

Caixas-d’água, calhas, tambores e outras tralhas se acumularam nos fundos dos quintais sem despertar promessas, nunca cumpridas, de faxina geral no sábado que nunca vinha.

Do lixo e do acumulado em terrenos baldios, não é bom nem falar.

A culpa recairia  no burro da carroça ou de quem não sabe fazer o descarte, sem paciência de esperar o dia da coleta.

O assunto também havia cansado. Perdido espaço no noticiário dominado por buracos e crateras de rua que festejam aniversário com direito a bolo de padaria e transmissão ao vivo, no horário mais nobre da TV.

Que a desaparecida andava diferente, ninguém duvidou.

Não frequentava mais os ambientes onde era rainha.

Pelos pronto-socorros nunca mais passara.

Há quem atribua este sumiço a uma certa inveja.

Ou ciúme.

Por tudo que já havia feito, nunca tinha recebido tanta atenção quanto o forasteiro desconhecido,  que nem tinha tirado  a catinga do mijo e já estava sentado na  poltrona da janela.

Quem jamais teve reservas de leitos exclusivos nos hospitais, muito menos UTIs inteiras, não teve também direito ao choro da Maju.

Como os comitês científicos não se pronunciavam, o real motivo daquela ausência não pode ser esclarecido.

Estudos clínicos, em fase inicial, procuram provar que na guerra ideológica do tratamento da virose do século que os médicos precoces, adoradores de drogas sem comprovação científica são os verdadeiros culpados pelo retorno triunfal da Dengue:

A Ivermectina havia falhado mais uma vez.

O Beijo (1908) – Gustave Klimt – Galeria Belvedere, Viena, Áustria

(Publicado em 23/04/2021, o texto sofreu atualizações)

One thought on “A VOLTA DA ESCAFEDIDA

  • Maria das Graças de Menezes Venâncio

    Gostei demais. Até porque admiro Gustav Klint. Gostei do que vc escreveu também. Tenho uma gravura no nosso quarto. Compramos no Rio de Janeiro, mas a moldura foi feita na Jocil. Escrever crônica que vale a pena ler não é para qualquer um. Parabéns!

    Resposta

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