3 de maio de 2024
CULTURA

FRASCO DE INFÂNCIA

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Pote de pêssegos (1886) – Claude Monet – Museu Staatliche Kunstsammlungen, Dresden


A aurora da vida que os tempos não trazem mais, cento e cinquenta anos depois,  pode ter imortalizado
Cassimiro de Abreu mas já não evoca  as mesmas saudades em todos.

Das raras luluzinhas que ousam se aproximar daquele bando de machistas misóginos, uma andava sumida. Muito antes da pandemia.

Por ter se mudado para mais longe, ou trocado o perfil na rede social para relacionamento sério, passou a  mandar notícias esporádicas.

Das de fazer inveja à porção bicho-grilo que habita o sótão  de cada um.

De Jeri a Arembepe, passou pela fumaça de um xamã em Machu Picchu até chegarem  fotos do retiro espiritual em Katmandu.

Depois, o desterro silencioso do isolamento alcançou também os menos zens.

No reencontro, tantas para falar, experiências iguais, até surgir a novidade e o interesse maior, quase assunto único do momento.

Depois de ter, em priscas e em vão, tentado um único adepto para a auto-hemoterapia, uma panaceia mais suave poderia penetrar aquela almas embrutecidas.

Se bem que os florais de Bach haviam falhado em sensibilizar os espíritos homofóbicos que continuam insistindo  que os anjos têm sexo. E nenhum é Rafaela. Ou Gabriela.

Quem sabe, não é chegada a hora de mais uma prática médica alternativa para se somar a tantas que despertam paixões no enfrentamento da temível doença desconhecida, ainda sem controle seguro.

Escolheu com cuidado quem poderia influenciar os outros, como se também acreditasse nos poderes do efeito rebanho.

Se funcionasse com o Professor, daria certo com os ignaros.

Pela harmonia e o equilíbrio do organismo, quem não iria se interessar?

E mais, sem maiores esforços, além de um rápido treinamento online

Nos frasquinhos cuidadosamente arrumados, óleos essenciais com promessas de acalmarem as vidas traumatizadas pelo longo confinamento e angustiadas com o futuro de incerto novo normal.

Aromaterapia era a receita do guru indiano.

Fazer o bem, a missão a ser cumprida para a evolução nesta passagem compulsória pelo vale de lágrimas.

A gosma esfregada em demonstração, no pulso,  não foi difícil de identificar.

Alecrim, quem não reconhece?

Debaixo das árvores frondosas, no início da manhã ainda fresca, o pedido para o cobaio fechar os olhos, respirar profundamente e começar uma pequena viagem interior que continuaria no curso, a mais vagar.

Jornada interrompida nos primeiros passos e devaneios quando a guia da felicidade e do equilíbrio lembrou, com voz hipnotizante, que aquele era o cheiro que leva as pessoas à infância e às lembranças mais puras.

A reação de quem já avista a ladeira íngreme da nona colina, foi desconcertante.

E bastante para mudar o assunto para temática mais contemporânea.

As lembranças da minha infância não cabem neste vidrinho.                             

E nem de longe, a vida dura que levei, cheira a alecrim ou qualquer outra coisa boa.

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(A essência do texto é recontada, depois de mais de um ano, por sugestão de testemunha auricular do episódio. Para ele, inédito)

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Campo de Papoulas em uma depressão perto de Giverny (1885) – Claude Monet – Museu de Belas Artes, Boston
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O Jardim das Peônias (1887) – Claude Monet – Museu Nacional de Arte Ocidental, Tóquio
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Estrada da Caverna, Pouville (1882) – Claude Monet -Museu de Belas Artes, Boston

One thought on “FRASCO DE INFÂNCIA

  • Maria das Graças Venâncio

    O texto de hoje está até interessante. Parece até que escutou a história de quem contou a experiência alucinógena. Pode ter sido a um psiquiatra e a fita vazou. As ilustrações todas amei, gosto de Monet e dos impressionistas. Bom final de semana.

    Resposta

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