3 de maio de 2024
Livro

GLADÍOLOS



GLADÍOLOS [e o novo romance de Gabriel Garcia Márquez]

                                                       * Napoleão Veras

Ana Magdalena Bach depositou durante anos um ramo de gladíolos brancos e frescos, religiosamente, sobre a sepultura da mãe, numa ilha distante que ficara para trás, e aonde se chegava de barca.

A claridade da manhã em que li a narrativa de Gabriel Garcia Márquez no seu livro novo e póstumo “Em Agosto nos vemos”, publicado a contrapelo do autor (o que em castelhano significa, entre outras acepções, ao arrepio da vontade de alguém) parece ter incidido sobre o dito ramo branco, deixando-o mais branco, excessivamente branco, quase incandescente.

É que a palavra gladíolo, com sua leveza, chegou-me pelos lábios de minha mãe, como tantas e tantas outras, mas que há muito andava oculta — a palavra e a mama — daí minha surpresa, um quase sobressalto.

Quando Garcia Márquez escreveu seu último romance, a neblina da Alzheimer começava a sombrear sua criatividade torrencial, festejada por meio mundo, enfermidade que o levou a profundo sofrimento pessoal, relatado por familiares.

Coincidentemente, Antônia, minha mãe, que também amava os gladíolos tão queridos de Magdalena Bach, por então ainda levando um dia a dia ativo, cheio de realizações e planos, começara também a apresentar fuga de ideias e memória, feito alguém sob densa cerração, cada vez mais densa, frustrante e desesperadora com o correr dos dias.

Aqui e ali a narrativa esbarra em objetos que também estiveram no cotidiano de minha mãe, o que me deixou mais curioso, sobretudo por vir de autor das coincidências delirantes. Agora, o perfume “Madeira do Oriente”, usado pela protagonista e por ela, atrás do lóbulo das orelhas, com parcimônia, e cuja fragrância escapou-me da memória olfativa.

Um romance com seus silêncios, pausas, ritmo sossegado, próximo à respiração do autor octagenário; longe do vozerio, do ritmo caleidoscópico de ‘Cien años de soledad’, ou de ‘El amor en los tiempos del coléra’, ainda assim, ou, por isso mesmo, belo, obra de mestre.
Simplicidade e elegância da linguagem permeiam a obra, abrindo alas a rico universo de significados. Não deixou de ser assim em “El coronel no tiene quien le escriba”. Adjetivação também impecável, com sua marca.

A paixão, o prazer e o erotismo erguem-se em Ana Magdalena como maneira de resistir ao tempo, encará-lo, energizar a carne, e sentir-se viva.

Com tintas de “realismo mágico” reserva uma única passagem: ‘um frango vivo sai da sopeira batendo as asas quando o governador a destampou para se servir’.

O olhar crítico de GGM exigiu tanto de si no momento de por um ponto final a sua última obra, que terminou por proibir a publicação — sabe-se lá por não satisfazê-lo suficientemente, ou por já não ter condições de avaliá-la, face ao estágio da doença.
A sensação que fica ao final da leitura é que os herdeiros acertaram em autorizar a publicação; mesmo com as dúvidas confessadas e a inescapável dor de consciência.

Franz Kafka escreveu ao melhor amigo Max Brod um último desejo: que ele queimasse todos os seus manuscritos, sem os ler. A fogueira deveria ser o destino de toda sua produção literária.

Max Brod, Rodrigo e Gonçalo García Barcha — estes, filhos de Garcia Márquez — não os atenderam, afortunadamente.

* Napoleão Veras                                                Alexandria, Abril/2024

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