2 de maio de 2024
Coronavírus

GOSTO DE NOVA VIDA

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O cão dos infernos e da moléstia não é tão velho,  mas não há de se duvidar da sua esperteza.

Há um ano, quem mergulhasse no mar revolto da semiologia,  encontraria  a pérola que fazia a nova peste diferente de todas as  enfermidades, viroses e resfriados.

Como em nenhuma outra morrinha, o comprometimento do olfato e do paladar mais que sintomas, sinais patognomônicos, tiravam o sabor da vida e alertavam para o perigo iminente.

As notícias que corriam o mundo também avisavam que por onde passavam, os invasores deixavam pelotões de ocupação.

Em pouco tempo, já estavam com o domínio dos cheiros e sabores locais.

A arma foi retirada do arsenal inimigo e a predição otimista é realidade.

Esta batalha eles perderam.

Os sentidos que dão mais prazer triunfaram sobre as novas cepas e variantes.

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CHEIRO E SABOR DA VITÓRIA

Quantas vezes nos aconteceu e esquecemos dos lugares, personagens e perrengues.

Ameaçados pela ignorância. Salvos pelos garçons.

Piloto em primeiros voos, na megalópole com fama de culinária cosmopolita, a fome de carne fez o pedido.

Steak tartar.

Cochichos, entreouvidos e a determinação do maître para que um dos seus comandados, o baixinho de cabeça chata, fizesse a abordagem ao freguês da mesa 27.

A do canto, por trás da coluna.

Na língua comum dos paraíbas.

Com bons modos para não melindrar o conterrâneo, a explicação  do prato exótico, pedido só pelos da colônia teuta, traduzida ao pé da letra,  e a pergunta em xeque-mate.

Em qual  ponto,  desejava a carne crua.

E antes da dúvida, a sugestão de uma mais seca e assada. Mais parecida com a de sol.

Os sabores ultrapassam fronteiras e os viageiros seguem os cheiros.

A tentativa de quebrar a monotonia do hambúrguer, fritas e catchup levou a criança renovada nos parques da Disney a entrar no primeiro restaurante de luz vermelha, familiar, que encontrou.

Nos hieróglifos traduzidos do cardápio, nada que lembrasse o Changay do Alecrim.

E a explicação que constava do letreiro em neon.

Cozinha cantonesa.

A primeira sopa de barbatana de tubarão a gente nunca esquece.

Em Cusco, a lembrança gustativa da culinária agresteira, prejudicada pelo espanto e cara de enjoo de quem não gostou e não vai comer das balzaquianas nórdicas (ou seriam, yankees as galegas?) tête-à-tête com um cuy.  O preá à pururuca, ainda  trazia uma cenoura na boca.

Ao curioso que enfrentou com galhardia um mote com huesillos não sobrou fome para o congrio, depois de dois imensos  pastel de choclo, como entrada.

A imagem da champanheira intocada, por medo de pagamento de taxa extra, no café da manhã do três estrelas, na memória, virou natureza morta digna de exposição no Reina Sofia.

Todas essas lembranças  e a vontade de provar outros pratos, outras vezes, reforçam a luta.

O inonimado que amedronta tem seus pontos fracos.

Lembrem. O inimigo entra pela boca e narinas.

Destrói logo paladar e olfato.

É por aí que devemos atacá-lo. Continuar. Insistir.

Sigamos a rota traçada pela boa mesa.

Às armas, pantagruélicos.

O tinhoso deve morrer de inveja e não resistirá aos  nossos cheiros e sabores.

Bon appétit !

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Natureza morta com cálice dourado                                  Porter de Ring (1640-1660) –  Rijksmuseum, Amsterdã

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