JACAREZINHO REVISITADO
Não é coincidência.
39 mil almas.
O mesmo número das que vivem em Nova Cruz, se espremem nos barracos, e correm, e fogem, e se escondem, e se ajoelham, e choram, e se arrependem, e pedem clemência, e recebem pontapés, e levam bala na nuca, pelos becos, vielas, lajes e palafitas da comunidade palco da mais sangrenta operação policial da história que não começa agora.
Quem poderia ser o padrinho de um dos meninos mortos com um fuzil automático nas mãos, recorda uma manhã deslumbrante de sol na cidade que maravilhada, continua acolhendo quem procura horizontes além de onde o rio Curimataú desaparece no Cedron.
Em 1977, quase todos em revoadas nos ventos sudestes, visavam passaportes nas cercanias do Buraco do Lacerda e se instalavam em algum abrigo arranjado por parente ou conhecido, entre a Praia de Ramos e o Morro do Alemão.
A primeira e única visita do príncipe-herdeiro de nobre família do agreste potiguar foi testemunhada pelo fidalgo Nilson Leite Rebouças, falecido precocemente, pro-cônsul mossoroense na República Independente da Pensão de Dona Rosa Brandão e registrada nos anais da memória desbotada pelas intempéries da vida.
O relatório circunstanciado, publicado neste Território Livre no primeiro dia de junho do ano da graça de 2019, é reproduzido como prova que a vida dos migrantes nordestinos e seus descendentes não mudou, em quase meio século.
BATISMO NO JACAREZINHO
Sem perspectivas na cidade do interior, como muitos da sua idade, resolveu tentar a sorte no Sul.
Encantado com promessas de emprego e as belezas da cidade maravilhosa, foi ficando.
Adaptou-se logo ao corre-corre e costumes da metrópole. E usos, também.
Do barraco de parentes para o próprio, foi um pulo.
Sobre duas ou três palafitas.
Jacarezinho! Avião!
Já era assim antes do síndico do W/Brasil.
O primeiro emprego a gente nunca esquece.
Transporte de coisas de valor. Em trouxinhas.
Jacarezinho! Avião!
Foi galgando posições na organização. Depois de ser promovido a gerente, mandou buscar o resto da família.
Quando soube que o amigo de infância, prestes a ser médico, estava morando por uns tempos na mesma cidade, o convite para apadrinhar o primeiro filho, ainda no ventre da companheira.
Acertaram uma visita para os detalhes da festa do batizado.
Num sábado, na companhia de quem conhecia aquelas ruas, vielas e becos, a recepção pela matriarca, no ponto de ônibus indicado.
Em frente, outro migrante, dono de sapataria, ao perceber o destino do grupo, recomenda, com ênfase, a desistência do que poderia vir a ser uma aventura perigosa.
Com os esclarecimentos que um salvo-conduto, a ordem dos hômi, assegurava o direito constitucional de ir e vir, o encontro foi realizado sem atropelos.
Com galinhada, farofa, cerveja e saudades.
A consagração do novo cristão nunca viria a acontecer.
O motivo ficou registrado nas estatísticas da mortalidade perinatal.
As notícias da família carioca também feneceram.
Até voltarem alguns anos depois, com o anúncio da tragédia e a dúvida final:
-Como foi que aquela bala perdida (ou não tão perdida assim), foi achar o compadre Cabelinho?