3 de maio de 2024
CoronavírusMemória

NO RASTRO DO MEDO

Autorretrato com a gripe espanhola (1819) – Edvard Munch – Museu Nacional de Arte, Arquitetura e Design de Oslo, Noruega


Como todos os outros, 2020 DC começava preguiçoso.

Sol, sal e mar.

Pra  tudo o mais só acontecer depois do Carnaval.

Na animada festa do povo, ao vivo, nos palanques pré-eleitorais, nas TVS,  as mesmas atrações.

As fantasias de sempre  e os temas politicos e esquerdamente corretos que têm se  repetido mais que refrão de partido-alto, nos  desfiles das escolas de samba.

A novidade foi  um atraso do turista que não ficou somente em mais um no show.

Levou falta, não pediu ressarcimentos, nem ao menos  adiou a excursão para o ano vindouro.

Na ressaca da fuzarca, apareceu sem avisar, fazendo folia, fora de época.

Mandou  antes a fantasia e quando a encomenda chegou, já era cinzas.

Ninguém saiu vestido de seda pura.

Nem de musseline.

Nem de Mandarim.

No meio do caminho, um empalho.

Quem sabe, efeito de tanta notícia de violência urbana, queimadas na Amazônia, achincalhes a Greta ou somente misoginohomofobia, preferiu passar o tríduo momesco em lugar mais elegante.

No Vêneto.

Daí para uma esticada pela Lombardia foi menos de um pulo.

Antes de finalmente embarcar  num navio de cruzeiro em Lampedusa já havia passado pela Úmbria, sem ter recebido a benção papal (SS estava gripada) no último jardim do Lácio.

Chegou ao Brasil, como rei coroado,  trazido nas bagagens dos endinheirados que festejaram os feriados,  cultuando Baco, em terras, praias e navios distantes.

Como o conde romeno, escondeu-se do sol.

Preferiu lugares onde o frio aproxima as pessoas, em ambientes mais aconchegantes.

Como guiados pelas estações do ano, os de sua espécie costumam aproveitar o outono para iniciar a viagem que contamina  amigos e familiares, se estendendo por todo o inverno.

Não se sabe ainda a razão de não ter participado  de bailes infantis.

Mostrou predileção especial pelos saudosistas das antigas.

Quem já nem troca o passo, mas faz tesouras e parafusos aos primeiros acordes do vassourinhas.

E lacrimeja de  saudade dos entrudos, corsos e troças.

Não foi brincante de primeiro espetáculo. Nem marinheiro de segundo naufrágio.

Há um século havia andado por tudo que foi canto da Europa mas entrou para a história como A Espanhola.

Acabou com a festa de, incríveis,  40 milhões de pessoas.

Todo ano dá o ar de sua desgraça.

Seu périplo começa pelo  norte, no inverno. Depois, repete a dose debaixo do equador.

Já transitou também em áreas menos extensas.

Há 60 anos, pela Ásia, quando não se sabia o que acontecia (nem quantos visitou) por trás da grande muralha, deixando um rastro de 1,5 milhões, presumidos.

Dez anos depois, só em Hong  Kong, mais um milhão na macabra conta sem somar  ninguém do país continental ainda fechado para o comércio e os olhos exteriores.

Andou pelo  Oriente Médio, violento, atacando os dois lados da guerra sem fim.

No país onde a esperança fez-se  profissão, o medo que o visto do turista durasse mais que um pesadelo de uma noite de verão, virou tormenta que nunca será esquecida.

 

Morte no Quarto da Enferma (1893) – Edvard Munch – Museu Munch, Oslo, Noruega

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