NOTAS BIOGRÁFICAS DE UMA DOUTORA IMAGINÁRIA
Não foi no primeiro vestibular, conforme esperado, admitido e aceito.
Era assim.
Há 15 anos, raríssimos passavam na tentativa inicial para o curso de Medicina.
Desistir, tentar outro de portas mais largas, ou mais um ano, estudando ainda mais, e repetir os testes, mais amadurecida.
E no ano seguinte.
E no seguinte.
Até chegar a vez.
Entusiasmada com a beleza e as perspectivas da profissão, aprendeu muito, sempre deixando outro tanto pra depois, que o tempo não era bastante.
Praticou.
No espelho dos mais velhos, trabalhou sem vencimentos.
Projetou-se, no futuro, e em algumas especialidades, simulou a prática.
Imaginou como seriam todos os anos de sua vida, daí pra frente.
Fez ciência.
Pesquisou.
Escreveu trabalhos. Tão bons que os professores-doutores engordaram currículos, assinando embaixo.
Ouviu sugestões e conselhos.
Fez muitas contas.
Amigas migraram para longe, para nunca voltar.
Escolheu ficar perto de casa.
O tempo do vôo solo não tardou.
O coração também dava seus sinais.
Esqueceu os átrios, válvulas e ventrículos.
Era tempo de formar família, com um colega, mais fácil de manter as vidas no mesmo ritmo sinusal.
Aluguel, contas a pagar, um carro, instrumento de trabalho tão útil quanto o estetoscópio, mas com certo status.
E o primeiro filho chegando.
Uma parada para as tarefas de mãe, ou tocar pra frente?
E em pouco tempo, dividir as alegrias da maternidade com uma equipe de babás com agendas tabeladas pelas leis trabalhistas?
Aprovação em concurso e a opção entre o emprego público, ou sem dedicação exclusiva, em vários lugares, como quase todo mundo faz.
Dois. Três. Quatro.
Noites e fins de semana a perder de vida.
Aceitar a faina insalubre, em lugares sem assistência digna, ou cansar de esperar pelas melhorias, sempre prometidas e nunca vindas?
A hora mais difícil.
No campo de batalha.
Na UTI abafada, infiltrada de mofo, desprotegida, sempre lotada, contaminada pela falta de quase tudo que não seja boa vontade e heroismo.
Uma imensa dúvida.
Neste ringue, o inimigo desconhecido pode ser enfrentado com a cara e a coragem?
O adversário mortal que já havia dizimado colegas em países muito mais ricos e hospitais bem aparelhados, seria dominado à unha, sem os adequados equipamentos de proteção individual?
O célebre juramento é passaporte para o auto-flagelo e morte heróica?
A Dra. Maria que já fez tantas escolhas, tem agora a mais difícil para a sua, e a vida da família.
Ela e tantas outras doutoras, enfermeiras e técnicas.
Todas Marias.
Todas Sofias.
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No Renascimento, a italiana Sofonisba Anguissola (1532/1625) foi a primeira pintora a conseguir fama internacional
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(A republicação do texto de 23/03/2020 é uma homenagem às mulheres que enfrentaram a múltipla jornada de trabalho, no front das primeiras batalhas da guerra da pandemia)