5 de maio de 2024
Coronavírus

NOTAS BIOGRÁFICAS DE UMA DOUTORA IMAGINÁRIA

Autorretrato (1560) – Sofonisba Anguissola – Museu Condé, Chantilly, França


Não foi no primeiro vestibular, conforme esperado, admitido e aceito.

Era assim.

Há 15 anos, raríssimos passavam na tentativa inicial para o curso de Medicina.

Desistir, tentar outro de portas mais largas, ou mais um ano, estudando ainda mais, e repetir os testes, mais amadurecida.

E no ano seguinte.

E no seguinte.

Até chegar a vez.                       

Entusiasmada com a beleza e as perspectivas da profissão, aprendeu muito, sempre deixando  outro tanto pra depois, que o tempo não era bastante.

Praticou.

No espelho dos mais velhos, trabalhou sem vencimentos.

Projetou-se, no futuro, e em algumas  especialidades, simulou a prática.

Imaginou como seriam todos os anos de sua vida, daí pra frente.

Fez ciência.

Pesquisou.

Escreveu trabalhos. Tão bons que os professores-doutores engordaram currículos, assinando embaixo.

Ouviu sugestões e conselhos.

Fez muitas contas.

Amigas migraram para longe,  para nunca voltar.

Escolheu ficar  perto de casa.

O tempo do vôo solo não tardou.

O coração também dava seus sinais.

Esqueceu os átrios, válvulas e ventrículos.

Era tempo de formar família, com um colega, mais fácil de manter as vidas no mesmo ritmo sinusal.

Aluguel, contas a pagar, um carro, instrumento de trabalho tão útil quanto o estetoscópio, mas com certo status.

E o primeiro filho chegando.

Uma parada para as tarefas de mãe, ou tocar pra frente?

E em pouco tempo, dividir as alegrias da maternidade com uma equipe de babás com agendas tabeladas pelas leis trabalhistas?

Aprovação em concurso e a opção entre o emprego público, ou sem dedicação  exclusiva, em vários lugares, como quase todo mundo faz.

Dois. Três. Quatro.

Noites e fins de semana a perder de vida.

Aceitar a faina insalubre, em lugares sem  assistência digna, ou cansar de esperar pelas melhorias, sempre prometidas e nunca vindas?

A hora mais difícil.

No campo de batalha.

Na UTI abafada, infiltrada de mofo, desprotegida, sempre lotada,  contaminada pela  falta de quase tudo que não seja boa vontade e heroismo.

Uma imensa dúvida.

Neste ringue,  o inimigo desconhecido pode ser enfrentado com a cara e a coragem?

O adversário mortal que já havia dizimado colegas em países muito mais ricos e hospitais bem aparelhados, seria  dominado à unha, sem os adequados equipamentos de proteção individual?

O célebre juramento é passaporte para o auto-flagelo e morte heróica?

A Dra. Maria que já fez tantas escolhas, tem agora a mais difícil para a sua, e a vida da família.

Ela e tantas outras doutoras, enfermeiras e técnicas.

Todas Marias.

Todas Sofias.

Autorretrato no cavalete (1565)- Sofonisba Anguissola – Castelo de Łańcut, Polônia

                                            ***

No Renascimento, a italiana Sofonisba Anguissola  (1532/1625) foi a primeira pintora  a conseguir fama internacional

                                             ***

(A republicação do texto de 23/03/2020 é uma homenagem às mulheres que enfrentaram a múltipla jornada de trabalho, no front das primeiras batalhas da guerra da pandemia)

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