O ADEUS QUE FICOU
A pandemia trouxe no seu embornal de mudanças de hábitos e costumes, o tabu que Francis Bacon em 1623, enquanto formulava os novos métodos da Ciência, deu nome de batismo.
Na Medicina, a proibição, sob forma de juramento, manteve a prática fora da lei e a léguas da ética.
“Eu não darei qualquer droga fatal a uma pessoa, se me for solicitado, nem sugerirei o uso de qualquer um desse tipo”.
A discussão da boa morte ressurgiu em meio a tantas outras, más, em números escandalosos e inevitáveis.
Terríveis sequelas em sobreviventes de penosos tratamentos intensivos, aumentaram o interesse por meios de, piedosamente, encurtar sobrevidas limitadas.
Desejos difíceis de confissão, guardado escondidos nos baús das famílias, apareceram entre os escombros do terremoto que varreu todas as nações.
O que explica que um país riquíssimo, com população uniforme e educada, com renda e indicadores de desenvolvimento invejáveis, assistência médica universal de excelente qualidade, território pequeno, tenha tido um desempenho pior que algum pobre estado do nordeste brasileiro.
O percentual de casos fatais nos Países Baixos chamou a atenção e fez pensar se não sofreu influência da aceitação da finitude como fato natural.
As escolhas que as equipes médicas fizeram enquanto os recursos da assistência entravam em colapso, estão sendo analisadas agora, com a pandemia controlada.
A ocorrência de uma seleção aceita, consentida, conformada e darwiniana, nunca será unânime.
Entre altas, baixas e incertezas se outras ondas viriam, não restaram dúvidas sobre quem foram as vítimas preferenciais.
A perversa doença mostrou-se iníqua, desigual e seletiva.
A maioria dos atingidos foram idosos e pessoas mais frágeis, com doenças crônicas.
A aceitação da hora última é mais natural onde é comum, em qualquer idade, por ameaça de mal incurável ou pela convicção de já ter vivido o bastante, reunir as pessoas mais chegadas, anunciar uma longa viagem, fazer as despedidas e partir.
Há cinco anos, um holandês ao repetir uma cerimônia cada vez mais rotineira, reacendeu a discussão com sua estória que rodou o mundo.
Sem nenhuma doença grave nem diagnóstico sombrio, em perfeita lucidez, reuniu a família, pais, irmãos, primos, o melhor amigo e um pastor.
Depois de jantarem os pratos e o vinho preferidos, e de uma oração, um médico injetou uma substância letal na veia do anfitrião.
Em menos de um minuto, ele adormeceu e parou de respirar.
Sem sofrimento, sem dor.
Aos 41 anos, divorciado e com dois filhos pequenos, depois de várias internaçoes em clínicas de desintoxicação, sem conseguir controlar a dependência ao álcool, ele e seu médico chegaram à conclusão que seu padecimento era insuperável.
A eutanásia desembarcou na comitiva da pandemia, com visto de permanência carimbado no passaporte.
(Texto publicado em 16/05/2021)