OUTROS MENINOS
Na pouco lembrada efeméride de 31 de março, nos dias de distanciamento, isolamento e introspecção, a repostagem d’O Menino Viu o Golpe, despertou reminiscências familiares.
Lembrar onde estava quando um fato relevante aconteceu, mesmo sem nenhuma participação direta, é bom exercício de memória.
E de confiança que o momento que maltrata vai passar.
Os registros do que vivenciamos na pandemia serão os maiores desde as primeiras inscrições rupestres.
Não deixarão de ser lembrados e repetidos, até a inevitável intervenção do doutor alemão.
Como as crianças de hoje contarão nosso drama aos netos?
Será que lembrarão do vídeo que o pai enviou para o avô em isolamento social e familiar, onde aparecem eufóricos e aos gritos de Viva o Corona?
Só porque não teriam aula naquela tarde preguiçosa.
Vão guardar na memória que em poucos dias já reclamavam da proibição de ir ao shopping da falta que o convívio com os colegas faz?
Que as aulas pelo tablet não eram as mesmas, sem o aconchego da professora.
E como era mesmo o nome da tia?
Se as novas tecnologias permitirem, haverá chance de resgate da memória eletrônica.
Para lembrar à guria que aos dois anos ficava na janela do apartamento, olhando para a piscina da escola vizinha, pedindo aos pais para ir para sua prainha.
Mesmo na manhã chuvosa e fria de Porto Alegre.
Os meninos de 1964 lembraram.
Como um filme em preto e branco.
A prima, também.
Da mãe chorando, preocupada com o marido, oficial da Aeronáutica.
De prontidão, aquartelado na Base Aérea, sem dar notícias.
E do alívio com a ligação tranquilizadora para a casa do vizinho, única com telefone nas redondezas.
Parece irreal.
Que se pudesse viver sem celular.
E liberdade.
O irmão caçula, também.
Aos seis anos, escutava o nome Castelo Branco e imaginava um palácio feito de areia, como os que construía na Barra do Cunhaú.
Alvo. Pintado da cor da praia.
E mostra como foram também, tempos de silêncio e medo.
A mudança na casa.
Uma fotografia do pai, ladeado por João Goulart e Juscelino Kubitscheck, coberta pela imagem de Nossa Senhora da Conceição.
Os avós de 2084 também lembrarão.
Como uma série da Netflix em 4K.
(Publicação original em 03/04/2020)