SAUDADE EM RECLUSÃO
Memórias há muito adormecidas. Esquecidas nas mesmas caixas que guardam outras lembranças.
À espera de um tempo livre pra espanar a poeira e ver o que ainda tem serventia, nesses tempos de distanciamento dos amigos e isolamento de sentimentos e emoções.
Das manhãs e tardes intermináveis na cidade preguiçosa.
Sem telefone.
Sem TV.
Sem outros perigos.
Nas longas viagens pelas ondas curtas, à procura de sons menos dissonantes e de chegar cada vez mais longe. Pra depois da Rádio Central de Moscou.
Que o proibido tinha gostinho especial.
Da dieta escolhida por ser ou não a comida carregada.
E da desconfiança infantil que tudo que Chico Preto trazia no balaio da feira, não restava dúvida, carregado era.
Do luxo de lanchar biscoito cream cracker com guaraná. E de tomar champagne todos os dias.
Dos montes de gibis que Seu Zé Gazeteiro trazia no PN do Recife, toda sexta-feira.
E vendia no quarto da pensão de Dona Regina, tia de Pipiu e Beto.
Espalhados em cima da cama e pelo chão do quarto, transformado em vitrine. E na melhor cigarreira do mundo.
Do martírio de tanta canja e de tanta sopa. Ralas.
Dos supositórios de cibalena que faziam qualquer um enganar o termômetro e esconder a febre.
Das proibições de qualquer esforço físico.
De chegar perto de uma bola. De olhar pra bicicleta.
De sair da cama para nada mais que as necessidades.
De andar sem pressa. Arrastando os pés até o banheiro. Estrategicamente construído nos fundos da casa.
De não subir escadas. Nem batentes, se a epidemia da vez era papeira.
Que quando descia, o menino nunca iria ser homem de verdade.
O medo de virar um pedrobúzios, zédacalçapreta ou outro macho-fêmea saído do armário paroquial, era a garantia do repouso absoluto.
De tomar banho.
Sem molhar o cabelo, em tempos que shampoo não havia.
Com menos água que a pouca de sempre.
Trazida em galões, ombros, trens e latas de querosene. Fria e doce. Do Piquiri.
Dos primeiros sinais que o mal estava indo embora, com a chegada das visitas desconfiadas.
De quem procurava pegar a doença. Só um pouquinho.
E, até que enfim, a permissão de ver o movimento da rua.
O que havia deixado de fazer. E perdido.
O tempo passar.
E as pessoas.
Da balaustrada do alpendre. Sentinela, em sua vigia.
Da volta às aulas, às santas freirinhas e à descoberta que sem elas, a vida era muito mais sem graça.
De pensar que depois que o progresso, o futuro e as vacinas chegassem, aqueles tempos de sofrimento não voltariam nunca mais.
E trouxessem tanta saudade.