3 de maio de 2024
Coronavírus

SAUDADE EM RECLUSÃO

E7854485-2735-4EA7-9DFD-EACACA46C3ABMemórias há muito adormecidas. Esquecidas nas mesmas caixas que guardam outras lembranças.

À espera de um tempo livre pra espanar a poeira e ver o que ainda tem serventia, nesses tempos de distanciamento dos amigos e isolamento de sentimentos e emoções.

Das manhãs e tardes intermináveis na cidade preguiçosa.

Sem telefone.

Sem TV.

Sem outros perigos.

Nas longas viagens pelas ondas curtas, à procura de sons menos dissonantes e de chegar cada vez mais longe. Pra depois da Rádio Central de Moscou.

Que o proibido tinha  gostinho especial.

Da dieta escolhida  por ser ou não a comida carregada.

E da desconfiança infantil que tudo que Chico Preto trazia no balaio da feira, não restava dúvida, carregado era.

Do luxo de lanchar biscoito cream cracker com guaraná. E de tomar champagne todos os dias.

Dos montes de gibis que Seu Zé Gazeteiro trazia no PN do Recife, toda sexta-feira.

E vendia no quarto da pensão de Dona Regina, tia de Pipiu e Beto.

Espalhados em cima da  cama e pelo chão do quarto, transformado em vitrine. E na melhor cigarreira do mundo.

Do martírio de tanta canja e  de tanta sopa. Ralas.

Dos supositórios de cibalena que faziam qualquer um enganar o termômetro e esconder a febre.

Das proibições de qualquer esforço físico.

C2BC168F-56A3-4531-82CE-905E363F28C3De chegar perto de uma bola. De olhar pra bicicleta.

De sair da cama para nada mais  que as necessidades.

De andar sem pressa. Arrastando os pés até o banheiro. Estrategicamente construído nos fundos da casa.

De não subir escadas. Nem batentes, se a epidemia da vez era papeira.

Que quando descia, o menino nunca iria ser homem de verdade.

O medo de virar um pedrobúzios, zédacalçapreta ou outro macho-fêmea saído do armário paroquial, era a garantia do repouso absoluto.

De tomar banho.

Sem molhar o cabelo, em tempos que shampoo não havia.

Com menos água que a pouca de sempre.

Trazida em galões, ombros, trens e latas de querosene. Fria e doce. Do Piquiri.

Dos primeiros sinais que o mal estava indo embora, com a chegada das visitas desconfiadas.

De quem procurava pegar a doença. Só um pouquinho.

E, até que enfim, a permissão de ver o movimento da rua.

O que havia deixado de fazer. E perdido.

O tempo passar.

E as pessoas.

Da balaustrada do alpendre. Sentinela, em sua vigia.

Da volta às aulas, às santas freirinhas e à descoberta que sem elas, a vida era muito mais sem graça.

De pensar que depois que o progresso, o futuro e as vacinas chegassem, aqueles tempos de sofrimento não voltariam nunca mais.

E trouxessem tanta saudade.

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