SEQUESTRO E SÍNDROME DA CHINA
A suspensão abrupta das atividades rotineiras, do convívio familiar mais amplo e dos amigos, é violência sem tamanho.
Viver, sob coação, em ambiente limitado sem o direito de ir e vir, a depender do tempo decorrido, pode levar ao final, a uma situação de estresse pós-traumático.
Ou desenvolver uma inexplicável admiração pelo opressor.
Ainda não se tem notícias de estudos psicológicos, se o comportamento dos que enfrentaram o confinamento pelo coronavírus é o mesmo da Síndrome de Estocolmo.
Lembra um crime elaborado, profissional, urdido por gente bem preparada e que exige muita experiência de quem o pratica e paciência dos que sobreviverão.
Sequestro.
O local do início da ocorrência, o mais improvável. Mas dizem os especialistas, é de onde e quando menos se espera que surge o impensado.
Caminhada diária e matinal com amigos, num domingo de parque com frequência reduzida.
Muitos viajam. Vão às praias e fazendas.
No portão principal, muito próximo dos guardas da vigilância, um senhor de idade e boa aparência.
Trajava bermudas, camisa de mangas curtas, de botão. Tênis e boné do América.
Detalhe que pode ajudar mais pra frente: na mão direita, um pedaço de pau. Envernizado. Desses que muita gente carrega para espantar os cachorros de rua.
Me chama pelo nome e vai logo dizendo que tem alguma coisa pra mostrar.
Caminhamos juntos até um Classic com bons quinze anos de uso. Senta-se ao volante, abre a porta do carona e manda que entre.
Mal me acomodo no banco e o bólido sai a toda.
A corrida não leva mais que cinco minutos.
Portão eletrônico acionado e entramos em lugar onde nunca havia estado antes.
Condomínio de classe média alta.
Sou forçado a segui-lo.
Tomamos o elevador que parou no quarto andar.
No apartamento, pela fresta da porta entreaberta, deu pra ver que uma mulher dormia. Sua cúmplice, certamente.
Naquele instante, pensei rápido. Era ele, o sequestrador e eu.
Daí pra frente, comecei a ficar tranquilo.
A motivação e razões do ardil foram explicadas. Muito bem entendidas e aceitas.
Meu algoz passava dos 85 anos e há mais de vinte, nossos caminhos se cruzavam diariamente. Além dos cumprimentos, rápidas conversas que os ritmos diferentes das passadas permitiam.
Tudo que queria era mostrar onde morava. E como tem sido sua vida na cidade que escolheu para fazer amigos e família, desde que deixou Nova Cruz, alguns anos antes que eu tivesse nascido.
Vida longa. E mansa,
Rosalvo d’Oliveira.
(Publicação original em 10/07/2019)
Rubens – O Rapto das Filhas de Leucipo (1618)