2 de maio de 2024
CoronavírusMemória

A CULPADA IMAGINÁRIA

Santa Francisca Romana anunciando à Roma, o fim da epidemia de peste (1656) – Nicolas Poussin – Museu do Louvre, Paris


A pandemia nem havia amornado  por completo  e a campanha de descrédito de uma das profissões mais admiradas e respeitadas, já estava de volta.

Esqueceram rápido os que, ao lado de outros tantos companheiros das equipes médicas, arriscaram a vida no front da batalha mais cruel.

Nem ao menos respeitaram a memória dos caídos nos campos heróicos, salvando os atingidos pelo inimigo invisível.

Por trás do escudo protetor das vacinas, e confiantes numa imunidade sem garantias, passaram a questionar condutas e tratamentos usados quando tudo que os médicos e os mais sábios sabiam, era que  daquela doença, naquele tempo, quase nada se sabia.

A CPI do Senado, qual um exército de brancaleones, percorreu os subterrâneos e catacumbas do poder, em labirintos já trilhados tantas vezes por eles próprios, em busca de um culpado que desde o início, já identificavam.

Para julgar, condenar e se possível,  terminar o serviço do esfaqueador insano da Rua Halfeld, atacaram sem piedade toda uma classe.

Travestidos de censores da arte de curar, os mais violentos verdugos, iludindo os leigos sob um lustro de conhecimentos ultrapassados, retirada o mofo das escadas que usaram para alcançar seus cargos eletivos, tiveram a petulância de ridicularizar os ex-colegas que continuavam, nas beiras dos leitos, humildes e eternos aprendizes.

Transformaram conceitos que se renovavam na ciência das verdades transitórias, em atos criminosos.

Convicções passadas de geração a geração foram escondidas no abrigo da clandestinidade,  para não acabarem na  fogueira da profana inquisição.

Os alquimistas do planalto, de folha corrida sobejamente do conhecimento público e dos tribunais lenientes, por conviverem com tantos Mr. Hydes, grudaram no peito de todo médico, um crachá de Dr. Jekyll.

Aos poderosos que liam Graciliano Ramos e outros clássicos com os olhos de assessores regiamente remunerados, fica a lembrança que a missão que abraçavam não era nova.

Muitos tentaram denegrir a Medicina por ciência inexata, aos médicos como falsos deuses e atear fogo à  intricada relação saúde-doença, médico-paciente.

Pelo menos um, com muito mais inteligência e graça, ficou perpetuado na história do teatro de comédia.

Argan, personagem criado por Molière há 350 anos, na sua hipocondria, só queria mesmo é que sua filha casasse com o filho de um médico, para garantir tratamento gratuito para a família toda.

A fixação do doente imaginário pelos médicos não teve cura, mas a esposa que se aproveitava da situação para proveito próprio e vantagens, foi desmarcada ao fim da trama.

Na peça exibida no Teatro dos Três Poderes, uma classe inteira não teve direito de se defender, a expor livremente o pensamento, ao contraditório nem de exercer a profissão como sempre fez.

Quando se  vê os mesmos métodos aplicados nas diversas CPIs, pelos mesmos reincidentes, um só pensamento:

Não dá pra esquecer o que vocês fizeram na pandemia passada.

Senadores, Randolfe, Omar e Renan, em cena de O Doente Imaginário


(Texto, com alterações, publicado em 27/09/2021)

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