AZAR POÉTICO
Quando as ordenações e leis de Portugal foram recopiladas em 1595, por mandado do muito alto católico e poderoso rei Dom Felipe I, a punição aos adúlteros não mudou muito.
O Código Manuelino já exportava as punições pr’além mar e pr’as terra dos papagaios, desde que um certo errante navegante, levado pelos ventos a São Miguel do Gostoso, avistou o pico do Cabugi.
A norma legal resistiu à união, em um só reino, da península ibérica, a todo o período de colônia, aos governadores gerais e não se alterou nos 13 anos que o sexto João, governou seus impérios, às beiras dos mares tropicais.
Pedro, o filho rebelde passou o livrinho para o soberano órfão de pais vivos, e nem a chegada dos militares plebeus ao poder, nada mudou.
Somente em 1916 foi elaborado o primeiro código penal brasileiro.
Até o nascimento dos avós dos sessentões de hoje, traição conjugal era crime, sujeito à punição maior de todas.
Mas somente para alguns.
Não era ainda questão, nem ousadia de gênero.
A exceção só acontecia, se entre as quatro paredes, onde ninguém metia a colher, os machistas e misóginos fossem de linhagem nobre.
A única cerca intransponível era a que separava as damas e moçoilas da corte, dos reles mortais, plebeus, passíveis de execução, a mando do ultrajado.
Contam que o enganado, complacente, generoso ou manso, era obrigado a usar enfeites identificadores nos chapéus, não necessariamente, em formato de pontas.
Nem feitos de couro.
Usos e costumes não desaparecem em meia dúzia de gerações, mas em tempos de tolerância e modernidades, não custa, aliviar a cefaleia, o sofrimento e a carga de quem teve o azar e o destino de ter sido passado pra trás.
Os adornos não mais ornamentam as testas somente dos cisgêneros binários.
Há imensas possibilidades que não cabem mais no alfabeto romano, de todas as formas plurais de amar, sem exclusividade, sem segredo, sem armários.
Nem o cancioneiro popular, nem os mais modernos anti-inflamatórios não hormonais, foram capazes de erradicar por completo a dor de tantos cotovelos traídos.
Inutilismo à parte, a poesia é o último bastião de esperança e regaço dos que aceitam e se conformam com o amor compartilhado.
A honra não mais será lavada a sangue, nem perdoada nos tribunais androcêntricos.
Mais de quatro séculos depois do persistente desvio de comportamento, basta que a ideia de um homônimo do antigo rei de Portugal e España seja aceita, e o assunto será sepultado em cova de mais de sete palmos.
Felipe, o Sales, príncipe dos poetas de São Rafael do Vale do Assu, emergiu da cidadela afogada, para anunciar em um dedo de prosa, que uma singela frase seria capaz de acabar com todo preconceito e liberar os relacionamentos das amarras da fastidiosa monogamia.
Ninguém mais será ridicularizado por continuar com parceira caída em tentação.
Com sapiência e empatia, os traídos estarão, finalmente, livres de estigmas e maledicências .
Basta que se admita: os coitados não são vítimas.
Eles, apenas, sofrem infortúnios líricos.
(Enquanto houver lirismo e desafortunados, o texto de 28/10/2021 será sempre atual)