BOMBEIRO NOTURNO
O sembrol não havia dobrado a esquina, e o estouro, em estampido escandaloso, daqueles diagnosticados pela ausculta, não foi arroubo de transformador no alto do poste.
Não piscassem as lâmpadas, no rastro da noite, ainda cabia um tanto de sono.
A curiosidade só não foi maior que a fumaça escura vinda da rua e da casa vizinha, em labaredas altas no medidor da luz.
Momentos de decisão.
O que fazer, por onde começar e a constatação de nunca estar preparado para situações fora das habituais.
Nós.
A patroa, a secretária doméstica, a vizinha, o porteiro do prédio em frente.
Até os bombeiros que não atenderam aos apelos aflitos.
Um spoiler para antecipar a ausência de vítimas e como diz a mocinha da TV, a ocorrência apenas de danos materiais.
E as lições que ficam.
Para quem desligou a energia da própria casa e empunhou a mangueira de 30 metros e jorro forte, mas não deixou de ser admoestado.
–Não se usa água em incêndio elétrico.
Deve ser crença de quem não acredita em intervenções precoces.
Custa tentar, ou a Ciência preconiza, deixar arder a febre até precisar de tubos, irrigadores e hidrantes?
No início do curto-circuito, energia cortada, a queima de material plástico pode ser resolvida com o precioso e ainda abundante líquido.
Depois, que venham os estudos duplo-cegos para comprovar a observação e a experiência pessoal no caso bem-sucedido.
As imagens dos soldados do fogo aguando prédios vizinhos quando o foco do incêndio foge do controle, no resfriamento do patrimônio ameaçado, resgatou a sensação ancestral de macaco alpha, com o peito inflado de fuligem.
Nestas horas, também aflora o saudosismo da falta que fazem os extintores que não equipam mais os automóveis.
E marca o imobilismo do guardião do prédio em trazer a solidariedade de vizinho, na espuma anti-chamas que em condomínio tão chic, não deve faltar.
Que seja revogada a norma para o combate ao fogo de origem na rede elétrica.
E pelo menos que não digam os bombeiros, que só se deslocam a pedido da companhia energética.
Ou com a casa rendida.
Que se reconheça, a empresa da força e da luz atende prontamente os chamados.
Pelo WhatsApp, na voz de telefonista-robô, com a precisão da hora marcada para a chegada, em até seis horas, previstas.
O episódio isolado também serve de argumento para a utilidade das máscaras.
Em ambientes esfumaçados, têm serventia, mas na prática, na hora matinal, no arrabalde, ninguém lembrou do acessório então obrigatório, ainda tão habitual.
No rescaldo das cinzas, a intrusa lembrança, há tempos jogada num canto da memória, para o título do texto, no apelido de um colega de internato.
Nas suas simulações de combate aos incêndios, todas as noites, os lençóis encharcados de urina e vergonha, secando ao sol, no bullying que ainda não sabíamos existir, a auto-homenagem ao herói da madrugada.
(A publicação original, de 21/08/2020, sofreu reparos exigidos pelos novos limites da liberdade de expressão).