28 de abril de 2024
Comportamento

BOMBEIRO NOTURNO

Prometeu carregando o fogo (1637) – Jan Cossiers – Museu do Prado, Madri


O sembrol não havia dobrado a esquina, e o estouro, em estampido escandaloso, daqueles diagnosticados pela ausculta, não foi arroubo de transformador no alto do poste.

Não piscassem as lâmpadas, no rastro da noite, ainda cabia um tanto de sono.

A curiosidade só não foi maior que a fumaça escura vinda da rua e da casa vizinha, em labaredas altas no medidor da luz.

Momentos de decisão.

O que fazer, por onde começar e a constatação de nunca estar preparado para situações fora das habituais.

Nós.

A patroa, a secretária doméstica, a vizinha, o porteiro do prédio em frente.

Até os bombeiros que não atenderam aos apelos aflitos.

Um spoiler para antecipar a ausência de vítimas e como diz a mocinha da TV, a ocorrência apenas de danos materiais.

E as lições que ficam.

Para quem desligou a energia da própria casa e empunhou a mangueira de 30 metros e jorro forte, mas não  deixou de ser admoestado.

Não se usa água em incêndio elétrico.

Deve ser crença  de quem não acredita em intervenções precoces.

Custa tentar, ou a Ciência preconiza, deixar arder a febre até precisar de tubos, irrigadores e hidrantes?

No início do curto-circuito, energia cortada, a queima de material  plástico pode ser resolvida com o precioso e ainda abundante líquido.

Depois, que venham os estudos duplo-cegos para comprovar a observação e a experiência pessoal no caso bem-sucedido.

As imagens dos soldados do fogo aguando prédios vizinhos quando o foco do incêndio foge do controle, no resfriamento do patrimônio ameaçado, resgatou a sensação ancestral de macaco alpha, com o peito inflado de fuligem.

Nestas horas, também aflora o saudosismo da falta que fazem os extintores que não equipam mais os automóveis.

E marca o imobilismo do guardião do prédio em trazer a solidariedade de vizinho, na espuma anti-chamas que em condomínio tão chic, não deve faltar.

Que seja revogada a norma  para o combate ao fogo de origem na rede elétrica.

E pelo menos que não digam os bombeiros, que só se deslocam  a pedido da companhia energética.

Ou com a casa rendida.

Que se reconheça, a empresa da força e da luz atende prontamente os chamados.

Pelo WhatsApp, na voz de telefonista-robô, com a precisão da hora marcada para a chegada, em até seis horas, previstas.

O episódio isolado também serve de argumento para a utilidade das máscaras.

Em ambientes esfumaçados, têm serventia, mas na prática, na hora matinal, no arrabalde, ninguém lembrou do acessório então obrigatório, ainda  tão habitual.

No rescaldo das cinzas, a intrusa lembrança, há tempos jogada num canto da memória, para o título do texto, no apelido de um colega de internato.

Nas suas simulações de combate aos incêndios, todas as  noites, os lençóis encharcados de urina e vergonha, secando ao sol, no bullying que ainda não sabíamos existir, a  auto-homenagem ao herói da madrugada.

Narciso (SEC. XVII) – Jan Cossiers – Museu do Prado, Madri

(A publicação original, de 21/08/2020, sofreu reparos exigidos pelos novos limites da liberdade de expressão).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *