EU VOU CONTANDO AS MARÉS – Anotações sobre solidão, solidões
* Napoleão Veras
Os emojis que hoje me chegaram são um rostinho sorridente com a boca entreaberta, e um outro que leva os olhinhos quase fechados, de aparência amena. Expressam os mais altos níveis de felicidade.
Essas coisinhas amarelas, signos mundialmente aceitos, invadem as telinhas digitalizadas e instalam distintas realidades com o fim, entre outros, de acrescentar emoções à palavra escrita e a outras situações.
O que hoje custa muito às pessoas dizerem ou revelarem, para essas figurinhas é café pequeno, pois elas riem, choram, ironizam, assustam-se, e assim — numa boa — entram em cena para nos substituir, acanhados seres humanos.
Em boa hora, inclusive, pois nunca custou tando dizer-se. Botar a voz numa simples chamada telefônica passou a ser um incômodo, ou um tormento; melhor evitar. Poupar-se das emoções da fala — parece ser assim.
A mínima intimidade na relação interpessoal (uma prosaica chamada telefônica), cada dia mais torna-se coisa do passado. Limitar o contato a quase nada. Fechar-se em copas.
Convite de aniversário e outros, comunicado de morte de ente querido, tudo isso, fazer por asséptica mensagem escrita, via celular — pois concisa, telegráfica — sem esquecer jamais os emoticons!
O isolamento social e emocional parece consolidar-se como destino inexorável, contra o qual resulta impossível reagir.
Nessa levada estaremos em breve plenamente rendidos, distribuindo tão somente emojis a conhecidos, desconhecidos, amigos ou nem tanto, mas igualmente ocupados atrás de telas pixelizadas, navegando universos fragmentados, desconexos, solitários, em fuga batida de uma realidade que perdeu os pilares
O mundo virtual expandido pelo smartphone, talvez uma revolução maior que a da Galáxia de Gutemberg, espécie de brinquedo para todas as idades, ‘urso de pelúcia digital’ no dizer do filósofo sul coreano Byung-Chul Han, a satisfazer expectativas, desejos e fantasias, inclusive sexuais, aos poucos assume ares concretos, passando a ser, de fato, o novo normal.
Sensação de acuados num espaço cada dia menor, após termos migrado definitivamente(?) do mundo vasto mundo para o metro quadrado neurotizante onde o aparelho digital é o centro, a loca. Confortável, pode ser… refrigerada até, mas diminuta diante a exuberância esquecida lá fora.
A trilha sonora para a fuga do real, no rumo de um ‘detestável mundo novo’, da distopia, da incomunicabilidade, entre tantas, bem poderia ser o trompete rascante de Miles Davis em Bitches Brew’. Redesenhar a paisagem desolada, fragmentada, solitária, tal a atual, tangida por três pianos e duas baterias improvisadas, a uma só vez.
Cada vez mais difícil conectar com o outro de cara lavada, pois há sempre um instrumento a separar-nos, como o avô que no primeiro ano do netinho só o enxergava através do visor da câmara fotográfica do celular.
Comunicar-se, apenas na distância segura da internet, tendo nas mãos a telinha fria.
A escritora americana Sigrid Nunez fala duma internet “que nos fez a vida mais fácil em muitos aspectos, porém mais difícil no emocional”.
O que antes se imaginava de natureza agregadora, terminou por se revelar também um divisor brutal da vida social.
A solidão revela-se tanto maior quanto mais gente ocupe o mesmo espaço e multidões se produzam. A ‘gasta’ solidão da cidade grande. Afirmação aparentemente incongruente: quanto mais gente ocupe determinado espaço menos vai se comunicar, interagir.
Pessoas da zona rural, com suas casas distantes entre si, têm maior probabilidade de se acercar do que vizinhos de porta de edifícios e condomínios. No dizer de Olívia Laing, pensadora inglesa, “a solidão é um lugar povoado.”
O contato com o entorno e com o cotidiano vai-se escasseando, erguendo-se em seu lugar um tempo de isolamento. Não é exagero falar em pandemia de solidão. Ao contrário da outra que, depois de mostrar o afiado das unhas parece aos poucos recuar para as profundas, esta se afirma cada dia como um grave problema de saúde pública, no seu cortejo de vulnerabilidade à ansiedade, angústia, depressão, estresse, medo, apagando em definitivo aquela imagem poética, consagrada no universo das letras de tangos e boleros do passado.
Dificílimo conseguir a desejada autossuficiência em relação ao mundo. Carregamos a natureza gregária, e até ontem, o melhor da vida em sociedade foi a convivência.
Hoje o bicho vem mudando suas escolhas rapidamente. Prefere os cantos, quartos, espaços isolados, arquitetura de exclusão, de baixa circulação, de mínima probabilidade de encontro, comunhão, tábua de marés pra de 6 em 6 horas contar e preencher seus dias.
Esses labirintos viraram um prazer moderno.
*Ilustrações: Edward Hopper (1882-1967)
Muito bom texto. Com uma profundidade bonita de se ler. E, acho, que as mídias sociais podem viciar!!!