2 de maio de 2024
Comunicação

EU VOU CONTANDO AS MARÉS – Anotações sobre solidão, solidões

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                                               * Napoleão Veras 


Os
emojis que hoje me chegaram são um rostinho sorridente com a boca entreaberta, e um outro que leva os olhinhos quase fechados, de aparência amena. Expressam os mais altos níveis de felicidade.

Essas coisinhas amarelas, signos mundialmente aceitos, invadem as telinhas digitalizadas e instalam distintas realidades com o fim, entre outros, de acrescentar emoções à palavra escrita e a outras situações.

O que hoje custa muito às pessoas dizerem ou revelarem, para essas figurinhas é café pequeno, pois elas riem, choram, ironizam, assustam-se, e assim — numa boa — entram em cena para nos substituir, acanhados seres humanos.

Em boa hora, inclusive, pois nunca custou tando dizer-se. Botar a voz numa simples chamada telefônica passou a ser um incômodo, ou um tormento; melhor evitar. Poupar-se das emoções da fala — parece ser assim.

A mínima intimidade na relação  interpessoal (uma prosaica chamada telefônica), cada dia mais torna-se coisa do passado. Limitar o contato a quase nada. Fechar-se em copas.

Convite de aniversário e outros, comunicado de morte de ente querido, tudo  isso, fazer por asséptica  mensagem escrita, via celular — pois concisa, telegráfica — sem esquecer jamais os emoticons!

O isolamento social e emocional parece consolidar-se como destino inexorável, contra o qual resulta impossível reagir.

Nessa levada estaremos em breve plenamente rendidos, distribuindo tão somente emojis a conhecidos, desconhecidos, amigos ou nem tanto, mas igualmente ocupados atrás de telas pixelizadas, navegando universos fragmentados, desconexos, solitários, em fuga  batida de uma realidade que perdeu os  pilares

AE89CD6C-5FFA-4050-B41E-707044B7BB00O mundo virtual expandido  pelo smartphone, talvez uma revolução maior que a da Galáxia de Gutemberg, espécie de brinquedo para todas as idades, ‘urso de pelúcia digital’ no dizer do filósofo sul coreano Byung-Chul Han, a satisfazer expectativas, desejos e fantasias, inclusive sexuais, aos poucos assume ares concretos, passando a ser, de fato, o novo normal.

Sensação de acuados num espaço cada dia menor, após termos migrado definitivamente(?) do mundo vasto mundo para o metro quadrado neurotizante onde o aparelho digital é o centro, a loca. Confortável, pode ser… refrigerada até, mas diminuta diante a exuberância esquecida lá fora.

A trilha sonora para a fuga do real, no rumo de um ‘detestável mundo novo’, da distopia, da incomunicabilidade, entre tantas, bem poderia ser o trompete rascante de Miles Davis em Bitches Brew’. Redesenhar a paisagem desolada, fragmentada, solitária, tal a atual, tangida por três pianos e duas baterias improvisadas, a uma só vez.

Cada vez mais difícil conectar com o outro de cara lavada, pois há sempre um instrumento a separar-nos, como o avô que no primeiro ano do netinho só o enxergava através do visor da câmara fotográfica do celular.

Comunicar-se, apenas na distância segura da internet, tendo nas mãos a telinha fria.

A escritora americana Sigrid Nunez fala duma internet “que nos fez a vida mais fácil em muitos aspectos, porém mais difícil no emocional”.

O que antes se imaginava de natureza agregadora, terminou por se revelar também um divisor brutal da vida social.

A solidão revela-se tanto maior quanto mais gente ocupe o mesmo espaço e multidões se produzam. A ‘gasta’ solidão da cidade grande. Afirmação aparentemente incongruente: quanto mais gente ocupe determinado espaço menos vai se comunicar, interagir.

13506B8E-47DB-45D4-9340-EFF4BECDF48APessoas da zona rural, com suas casas distantes entre si, têm maior probabilidade de se acercar do que vizinhos de porta de edifícios e condomínios. No dizer de Olívia Laing, pensadora inglesa, “a solidão é um lugar povoado.”

O contato com o entorno e com o cotidiano vai-se escasseando, erguendo-se em seu lugar um tempo de isolamento. Não é exagero falar em pandemia de solidão. Ao contrário da outra que, depois de mostrar o afiado das unhas parece aos poucos recuar para as profundas, esta se afirma cada dia como um grave problema de saúde pública, no seu cortejo de vulnerabilidade à ansiedade, angústia, depressão, estresse, medo, apagando em definitivo aquela imagem poética, consagrada no universo das letras de tangos e boleros do passado.

Dificílimo conseguir a desejada autossuficiência em relação ao mundo. Carregamos a natureza gregária, e até  ontem, o melhor da vida em sociedade  foi a convivência.

Hoje o bicho vem mudando suas escolhas rapidamente. Prefere os cantos, quartos, espaços isolados, arquitetura de exclusão, de baixa circulação, de mínima probabilidade de encontro, comunhão, tábua de marés pra de 6 em 6 horas contar e preencher seus dias.

Esses labirintos viraram um prazer moderno.


*Ilustrações: Edward Hopper (1882-1967)

One thought on “EU VOU CONTANDO AS MARÉS – Anotações sobre solidão, solidões

  • Henriques Bittencourt

    Muito bom texto. Com uma profundidade bonita de se ler. E, acho, que as mídias sociais podem viciar!!!

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