2 de maio de 2024
Familia

INESQUECÍVEIS CÚMPLICES

Domenico Ghirlandaio – Francesco Sassetti com seu Neto (1490) – Museu do Louvre, Paris

Quem tem neto morando longe, sabe que só há uma saudade maior.

Aquela que bate depois de  uma visita por poucos dias, quando se encontra uma pecinha de roupa esquecida por trás de um armário qualquer.

Para a profissão de avô, não se carrega a experiência de um dia também ter sido neto.

Ou os velhos estão demorando mais a envelhecer,  ou acabamos de presenciar um salto na evolução da humanidade.

Os pequenos são mais desinibidos, as recomendações dos pais abrandadas e revogadas as regras de não importunação dos frágeis velhinhos.

Não faz muito tempo que passou a vigorar a lei pode tudo na casa da avó.

Os setentões, trocaram os fundos das redes pelos volantes e estão sempre dispostos a preencher as lacunas nas escalas dos responsáveis pelo leva e traz dos futuros campeões olímpicos em tantas modalidades que praticam.

Como a  convivência plantada hoje será colhida no futuro, só os infantes poderão dizer.

Nas recordações que vão se perdendo, não ficarão mais lembranças de roupas costuradas com carinho, nem bordados transformados em obras de arte.

Restarão nas memórias gustativas,  restaurantes, sem as aventuras  das delícias que antes iam ao forno doméstico.

De ajudar a pegar, no galinheiro do fundo do quintal, a ex-poedeira, para o sacrifício dominical.

Quem, menor ainda na primeira década de vida, sob influência dos astros da eletrônica, haverá de acreditar que o avô, médico, costumava receber de presente da clientela vinda do interior, víveres que davam pra abastecer uma bodega.

E que alguns exageravam na generosidade, traduzida em perus e até pais-de-chiqueiro.

E ninguém pagava mico nem recebia o selo de qualidade cringe.

Estórias dos tempos que o leite não vinha das tetas das caixas tetrapack e deixavam boiando nas superfícies das xícaras, uma gosma, tipo slime,  chamada de nata.

Não é difícil imaginar o que as novas gerações irão contar para os que virão.

Muito mais do que aprenderam, o que ensinaram.

Como foram indispensáveis quando os nonos trocavam de telefone.

Quantas vezes tiveram de repetir para quem estava sempre confuso com o emaranhado da tecnologia sem fios.

Quando sentirem falta dos cúmplices, lembrarão como era fácil levar os grampas na conversa?

A fome seletiva da neta, daquelas que só passam à base de guloseimas, apareceu logo cedo.

Às sete da matina, na volta do comparsa, da caminhada com os outros parceiros de outro bando,  pelas ruas e bosques da cidade.

Foi só um teste para marcar o limite até onde poderiam ir as trangressões que os 66 anos de diferença de idade permitem.

–Vovô, não diga ao pai que você me deu pirulito a essa hora. Ele vai  ficar brabo com você.

Domenico Ghirlandaio – São Jerônimo em seu estudo (1480) – Igreja de San Salvatore di Ognissanti, Florença

(Texto publicado em 27/07/2021)

2 thoughts on “INESQUECÍVEIS CÚMPLICES

  • Luíz Costa

    E esse o segredo da felicidade e da virtude: Amarmos o que somos obrigados a fazer. Aldous Huxley. Parabéns ao Aprendiz, já chegou a Mestre faz tempo!!!

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    • Domicio Arruda

      O ego, escovado, agradece

      Resposta

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