1 de maio de 2024
Bom SaberImprensa Nacional

Jornalismo em alta: Vencedora do prêmio Nobel da Paz já comparou Bolsonaro a Duterte das Filipinas

O prêmio Nobel da Paz de 2021 foi concedido nesta sexta-feira aos jornalistas Maria Ressa e Dmitry Muratov por seus “esforços para salvaguardar a liberdade de expressão”, que o Comitê Nobel da Noruega reafirma ser pré-condição para a democracia e “paz duradoura”.

Crítica do presidente Rodrigo Duterte e de sua brutal guerra às drogas nas Filipinas, que já causou milhares de mortes desde 2016, Ressa foi laureada por empregar a “liberdade de expressão para expor o abuso de poder, o uso da violência e o crescente autoritarismo em seu país natal”.

Ressa disse ter ficado “surpresa” com o prêmio e acrescentou que o Rappler, pedra no sapato do governo Duterte, “vai continuar fazendo o que tem feito”.

“Essa é a melhor época para ser jornalista. Os tempos em que isso é mais perigoso também são aqueles em que isso é mais importante”, ressaltou.

Tanto Ressa quanto o Rappler enfrentaram diversos processos e investigações após a publicação de reportagens críticas sobre as políticas de Duterte, principalmente sua campanha de guerra às drogas.

A jornalista foi condenada por difamação online contra um empresário suspeito de envolvimento com o tráfico e aguarda o julgamento de um recurso, mas arrisca pegar até seis anos de prisão.

RELATO DA JORNALISTA PATRICIA CAMPOS DE MELO À FOLHA DE São Paulo 

Quando conheci a jornalista Maria Ressa, em dezembro de 2018, ela falou sobre as táticas do presidente filipino Rodrigo Duterte para manipular os eleitores usando as redes sociais e sobre as campanhas de assassinato de reputação de jornalistas.

E alertou:

“Eles usam o mesmo roteiro, [Jair] Bolsonaro e Duterte.

É importante continuar investigando. É preciso rastrear e responsabilizar essas pessoas.”

Na época, achei que era exagero.

Mas Ressa, vencedora do prêmio Nobel da Paz de 2021, provou que, além de ser uma jornalista corajosa e investigadora incansável, é uma visionária, pois enxergou antes de muita gente a ameaça à democracia representada pela combinação de líderes populistas e redes sociais.

“O país deixou de ser uma democracia e passou a ser uma ditadura por meio do ódio on-line”, disse ela em 2018, em entrevistas a Ana Estela de Sousa Pinto e a mim.

A jornalista e seu site, o Rappler, denunciaram os abusos da “guerra às drogas”, principal bandeira do governo Duterte, que resultou em mais de 12 mil mortes, muitas das quais de usuários de substâncias ilícitas e pessoas sem relação com o tráfico.

Trolls patrióticos, que disseminam ódio on-line patrocinados pelo Estado, conseguiram mutilar o jornalismo, levar o público a desacreditar os jornalistas nas Filipinas.

Assassinato de reputação era muito comum —usaram todos os animais possíveis para me xingar, zombavam da minha aparência, da minha voz. E diziam que os jornalistas críticos eram corruptos. Se você diz 1 milhão de vezes que alguém é corrupto, as pessoas acreditam. Usavam a viralidade do Facebook para espalhar mentiras”, disse ela.

Ressa revelou a máquina do ódio de Duterte.

Segundo ela, o presidente filipino usava redes de contas falsas, militantes ou pessoas contratadas para fazer ataques online coordenados contra jornalistas, opositores e defensores de direitos humanos, além de elogios ao governo.

Lembra algum lugar?

O Facebook chegou a suspender 200 contas ligadas a Nic Gabunada, gerente de redes sociais da campanha presidencial de Duterte em 2016, por “atividade inautêntica coordenada”. Gabunada nega o uso de contas falsas e afirma que se trata de movimento orgânico, de apoiadores reais do presidente.

(No Brasil, em julho de 2020, o Facebook removeu 73 contas ligadas a integrantes do gabinete de Bolsonaro, seus filhos e aliados, que promoviam ódio e ataques políticos no Facebook e no Instagram.)

Assisti a uma palestra de Ressa em Doha, em dezembro de 2018, e fiquei impressionada com sua força e capacidade de manter o senso de humor e a ironia em meio aos ataques sistemáticos que sofria.

Miúda, com um terninho neutro que é seu uniforme, a filipina de 58 anos parecia uma menina. Foi muito simpática comigo e perguntou mais do que falou –mais uma prova da excelente jornalista que é.

Queria saber tudo sobre o então recém-eleito presidente Bolsonaro.

Questionou se também havia no Brasil ataques online misóginos contra jornalistas —naquele ano eles ainda não eram tão comuns como hoje— e perguntou sobre assédios judiciais contra a imprensa.

À época, Ressa já enfrentava uma saraivada de processos movidos por apoiadores de Duterte e pelo próprio governo, tentativas de prisão, intimidação contra o Rappler, além de maciços ataques online orquestrados pelo presidente e seus apoiadores.

Ressa disse que foi a pressão sobre anunciantes que quebrou as pernas da imprensa filipina. Duterte, o líder autoritário, havia constrangido empresas a cortar publicidade em veículos que não fossem cordatos. E, com o tempo, os anunciantes se sentiram intimidados e reduziram as propagandas nessas mídias.

Há alguns meses, tive a honra de participar de um vídeo em apoio a Ressa, organizado pelo Centro Internacional de Jornalistas, que concedeu a ela o ICFJ Knight Award, pelo Comitê de Proteção a Jornalistas, que deu à filipina o prêmio Gwen Ifill, e pelos Repórteres Sem Fronteiras.

Eles nos mandaram uma máscara com a hashtag #CourageOn, e o resultado da campanha será usado para ajudar a pagar os advogados de Ressa.

O mote é “hold the line” (aguente a barra), expressão usada pela jornalista para dizer que ela e o Rappler vão continuar investigando e não serão intimidados.

Em janeiro, ela me escreveu para dar parabéns por uma vitória em ação de danos morais contra políticos brasileiros por ofensas sexuais. Perguntei a ela como estavam indo as coisas e disse que estava torcendo por ela. E Ressa, fiel a seu estilo modesto, respondeu: “Tudo bem… Ainda lidando com processos”.

A jornalista é alvo de ao menos dez ações judiciais do governo, acusada de sonegação de impostos, difamação online e violação de leis do mercado de capitais. Em junho de 2020, foi condenada no caso de difamação online, que prevê até seis anos de prisão, e recorre em liberdade. Já foi presa duas vezes.

“Estamos vendo nossa democracia sofrer uma morte por mil cortes. Pequenos cortes que estão fazendo sangrar o corpo político das Filipinas. Quando houver um número suficiente de cortes, a democracia estará tão fraca que acabará morrendo.”

Ressa usou essa analogia para descrever a ascensão do autoritarismo nas Filipinas em cena captada do documentário “Mil Cortes”, de Ramona S. Diaz.

Como ela já afirmou, seu caso é um “sinal de alerta” para o jornalismo livre e independente em todo o mundo.

Em sua homenagem, a imprensa tem a obrigação de “aguentar a barra”.

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