1 de maio de 2024
Educação

Na Folha de São Paulo, a Angicos de Paulo Freire com livros queimados e enterrados

Da Folha de São Paulo 

Angicos, RN Maria Eneide Araújo, 63, escondeu seus cadernos embaixo do colchão. Não queria perder a recordação da alfabetização, mas não teve jeito. Os boatos de que aquelas anotações poderiam levar seu pai Severino e sua mãe Francisca presos após o golpe militar de 1964 fizeram com que Eneide as entregasse e todas foram queimadas.

Em Angicos, no sertão do Rio Grande do Norte, outras pessoas fizeram o mesmo naqueles meados dos anos 1960: quem não queimou, enterrou cadernos e livros que os ligassem às aulas que receberam dos monitores orientados por Paulo Freire, que acabou preso e depois exilado pelo novo regime por ser considerado comunista.

A cidade potiguar recebeu em 1963 o primeiro experimento do método criado pelo educador para alfabetização de adultos e o objetivo era ambicioso: ensinar a ler 300 pessoas em 40 horas de aulas, em projeto que por isso ficou conhecido como as 40 horas de Angicos.

Passados 57 anos, Freire e seu método baseado no uso de palavras e vivências do cotidiano dos alunos é hoje o principal alvo da política educacional do governo federal.

O presidente Jair Bolsonaro já se referiu recentemente ao pernambucano, morto em 1997,  como “energúmeno” e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, afirmou várias vezes que o governo quer acabar com qualquer resquício da teoria nas escolas brasileiras.

Em Angicos, porém, Freire é onipresente. Na entrada da cidade, quando se sai da BR-304 que liga a cidade de pouco mais de 11,5 mil habitantes à capital Natal (190 km), há um portal com uma frase do educador, de 1993, quando esteve por lá naquele ano para receber o título de cidadão angicano:

“Nunca me senti tão acolhido como aqui”, diz um trecho.

Dos 300 alunos que tiveram aulas com 20 monitores, todos voluntários, nos primeiros meses de 1963, 16 ainda estão vivos e moram em Angicos.

Maria Eneide Araújo tinha seis anos quando ia às aulas com seus pais. O foco, claro, era alfabetizar adultos, mas a garotinha à época era usada pelos professores como um estímulo para que os familiares saíssem de casa à noite para estudar.

“As palavras eram projetadas na parede [por meio de slides]. Por exemplo: tijolo. Os professores explicavam como era fabricado, onde era usado, quanto custava, e com isso as letras e sílabas eram trabalhadas. Outra palavra muito usada foi belota, e muita gente que vem aqui nem sabe o que é. É bem local mesmo, aqueles adereços coloridos que enfeitamos as redes de dormir”, disse Eneide, que continuou os estudos e se tornou professora.

Os monitores identificaram mais de 300 palavras do vocabulário local para serem usadas nas aulas e incluíram outras que achavam importante, como voto, para trabalhar conscientização social e política que também fazia parte do método de Freire.

Eneide teve participação especial na aula de encerramento que teve a presença de Paulo Freire, que não esteve em Angicos o tempo todo durante o curso, e do presidente João Goulart.

“Ele [o presidente] pediu para eu ler uma notícia de um jornal para mostrar que tinha aprendido. Li e ele me disse que eu poderia pedir um presente e eu pedi uma bolsa para levar meus cadernos às aulas”, contou Eneide. Ela recebeu o presente.

Ele, que trabalhou na roça a vida toda, frequentou as aulas justamente na delegacia, junto com soldados e alguns poucos presos. Aprendeu a ler o básico e a escrever o nome e pôde votar. Esteve nas urnas na última eleição, em 2018, mas diz que agora não pretende mais comparecer (o voto é facultativo após os 70 anos). “Já estou velho”.

“Minha mãe me proibiu de ir, mas eu ia às aulas escondida. Ela dizia que era coisa de comunista, que a conversa na cidade era essa. Depois meu pai descobriu e apoiou, disse que era bom aprender”, contou Francisca de Brito, 75. Ela frequentou as aulas com 18 anos, gostou do que aprendeu e seguiu os estudos até o fim do que hoje é o ensino fundamental. “Aprendi a ler por causa do Paulo Freire, graças a ele, e hoje consigo ler a palavra de Deus”, disse Brito, evangélica.

Em 1963, Angicos tinha uma escola e mais de 90% da população era analfabeta. Hoje são seis municipais, três estaduais e duas particulares –segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a taxa de escolarização dos 6 aos 14 anos é de 96,4%, o que coloca o município apenas na 134ª colocação entre as 167 cidades potiguares.

Uma das escolas da cidade é a Professor José Rufino, no centro, que em 1963 recebeu a aula de encerramento com a presença de João Goulart. Hoje há um mural com fotos de Paulo Freire na cidade em 1993, mas as recordações de 1963 são mínimas.

Com cadernos e anotações queimados ou enterrados, há poucos registros das 40 horas de Angicos: uma cadeira onde Paulo Freire sentou, que está na Casa Popular, ou uma foto que Maria Eneide Araújo tem em um panfleto em que ela está lendo o trecho do jornal pedido por Jango. “Se teve algo de ruim foi que foi rápido demais, acabou logo. Era muito bom aprender”, disse Francisca de Brito.

3 thoughts on “Na Folha de São Paulo, a Angicos de Paulo Freire com livros queimados e enterrados

  • Nilda medeiros

    Engraçado sou de angicos vivia muito em nossa biblioteca mais não lembro nada dessa metodologia não tive absulutanente nada dessa influencia fui aluna do José rufino uma escola muito patriota onde a diretora Maria Auxiliadora e a Professora Maria José foram exemplos de dignidade entre outros do corpo docente

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  • Hélio de Sousa Reis

    O que mais lamento desta Experiência de Angicos que tornou Paulo Freire nossa estrela da educação brasileira é a ignorância de nossa elite do atraso, do dinheiro, golpista que se apavorou diante da possibilidade do povo ser alfabetizado e reclamar seus direitos. E sempre apelam para o espantalho, o fantasma do comunismo como pretexto. Tristes trópicos!

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  • Altina Abadia da Silva

    Paulo Freire maravilhoso, ou melhor dizendo, de uma amorosidade sem igual!
    Um texto sensível e verdadeiro, traz e faz viva a obra do maior educador brasileiro!

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