PARADA OBRIGATÓRIA
Das poucas categorias profissionais que não pararam totalmente as atividades durante as fases mais críticas da pandemia, o trabalho médico sofreu profundas transformações.
Pelo menos para aqueles que antes já tinham atingido o platô e estavam na curva descendente que leva todos à aposentadoria, ao ócio e ao tratamento das próprias doenças, sempre negligenciadas.
O trágico exemplo da Lombardia, replicado em todas as regiões do Brasil foi o principal motivo para as mudanças.
A primeira ideia de recrutar médicos italianos mais experientes, muitos aposentados, para a linha de frente, transformou-se em desastre.
Os números só não foram mais cruéis porque a ameaça feita pelo Ministro Mandetta – que haveria recrutamento compulsório – não se viabilizou.
O costume de aposentados do serviço público seguirem trabalhando por contra própria, ou em subempregos, foi alcançado, sem misericórdia, pela avalanche.
O que antes era trabalho mais ameno, virou perigo maior.
Algumas especialidades, longevas por natureza, permitem facultativos até depois dos 80.
Clínicos gerais, da familia e psiquiatras, costumam invocar a lei da bicicleta para resistir à compulsória.
Só param quando caem.
Os cirurgiões e áreas afins, sem saber quando chega a idade provecta, deixam o bisturi e outras aparelhagens mais sofisticadas, para se voltarem aos estetoscópios, antes considerados, por eles, obsoletos.
Exposição, comorbidades e equipamentos de proteção individual precários, não foram as únicas causas das perdas tão pranteadas e evitáveis.
Mesmo gozando de boas aposentadorias, estabilidade econômica e aparente vida tranquila, velhos plantonistas, continuaram trabalhando em hospitais e serviços públicos, sem vínculo trabalhista, através de empresas terceirizadas.
Por paradoxal necessidade.
Agora, com o fechamento das estatísticas, no legado dos ausentes, filhos menores, mais novos que os netos.
Novos casamentos, cônjuges jovens e crianças a cuidar e encaminhar na vida, a motivação e o combustível para assumirem tantas responsabilidades quanto as que se seguiram os cursos de formação, no início da vida profissional.
A persistência nas atividades ainda não responde uma pergunta e angustiante decisão, sempre adiada.
Qual é a hora certa do médico parar de clinicar?
(Reflexões sobre texto publicado em 11/09/20)