3 de maio de 2024
Memória

QUANDO CHEGA O TEMPO

O velho homem em tristeza (1890) – Van Gogh – Museu Kröller-Müller, Oterlo, Países Baixos


Não é só quando a nova lei da previdência adia a aposentadoria por mais alguns anos, é que você tem certeza  que já ficou velho.

É também quando o pensamento foge e o leva para tempos (nem tão  melhores assim) que os anos não haverão de trazer de volta. Jamais.

Quando reclama do barulho dos sacos de pipoca nas salas VIPs com poltronas reclináveis e temperatura de agradável a congelante, e bate saudade da zuada dos ventiladores do Cine Rio Grande. E das promessas gritadas ao fim dos trailers.

Eu venho!

Traga a mãe!

Quando se vê xingando o prefeito e a senhora sua  mãe pelos buracos nas ruas, esquecendo que já teve  orgulho de morar numa cidade que tinha pista. Só uma. De uma única curva.

Ao prometer a si mesmo que o próximo carro vai ser elétrico e ter no lugar das câmaras de ré, sistema de visão de 360°, e não tirar dos planos, a compra de  um fusquinha original (sem ar, direção nem vidros) para os passeios dos fins-de-semana.

Ao acompanhar, de longe, as angústias de quem espera o resultado do ENEM, e lembrar quando todo o vestibular foi anulado.

Por conta de um bizu.

No tempo em que se  plantavam acentos agudos nas oxítonas terminadas em u e i .

Menos nas provas de redação. Que não existiam.

Quando tem de explicar aos mais jovens o que era um bizú.

E como eram corrigidas as provas, e o que fazia um  perfurador de cartão de respostas.

E recordar que o resultado era divulgado, na marca da exclusividade, na voz pausada e torturante dos locutores da  Rádio Cabugi.

E que os jornais do dia seguinte eram disputados às tapas.

Que era de bom tom e alvitre, presentear com a página com a classificação do aprovado, toda a parentela.

E lembrar que as rotativas dos periódicos, incluído o vespertino, trabalhavam mais porque mais caro era mandar os estúdios de fotografias, fazer cópias fotostáticas, quando não se imaginavam  as xerox.

Quando na faculdade, o professor exigia boa apresentação dos alunos e esta, incluía barba feita.

Quando uma bata desabotoada era motivo de reprimenda.

Paramente-se, meu jovem.

Quando  não cansa de repetir para os aprendizes como eram eficientes a Medicina e a Clínica de outrora, e confessa que foi testemunha da chegada  dos primeiros aparelhos de ultrassom na cidade. E tomografias. E ressonâncias magnéticas.

E que fazia todo tipo de cirurgia, incluídas as maiores, sem reservas de leito de UTI.

Pela  simples e absoluta  inexistência deles.

A não ser no Recife, como todas as outras modernidades e tecnologias. E serpentário.

E principalmente, quando se emudece e chora pra dentro com uma simples e inocente pergunta do neto de quatro anos, olhando para suas veias salientes e o  pergaminho da pele das mãos:

Vovô, por que você ficou velho?

 

Retrato do Dr. Gachet (1890) – Van Gogh – Coleção particular em Tóquio


(Publicação original em 24/01/2020)

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