27 de abril de 2024
Memória

CLARICE E EU

Retrato a óleo, pintado por Giorgio de Chirico, em Roma (1945)

 

Quando conheci o primeiro judeu, já era gente grande, quase um médico.

E foi logo, o chefe do serviço onde aprendi o ofício, e como  guardar outros dias santos.

Feriados para todos, de todas as raças e credos,  menos para o migrante, cumpridor  das tarefas obrigatórias.

Como também havia um curi libanês (ou sírio, ou árabe), foi numa faixa de gaza, a forja da profissão, sob a proteção de conterrâneo baiano e de outros  cariocas, que todos eram, da gema.

O hospital de boa reputação e prédio imponente.

Projeto de Niemeyer, jardins de Burle Marx , em valorizado bairro, às margens da Lagoa, destino de alguns famosos.

Da comunidade judaica, dos bem relacionados que não podiam, ou não queriam, pagar às clínicas particulares, e de todos que davam um jeitinho para encontrar a vaga no nosocômio público, separados do povão, em confortáveis suítes, numa repetição do que se via ali por perto.

Luxuosos prédios de apartamentos nos sopés dos morros de favelas, futuras comunidades.

Entre os atarefados e os de saída para o merecido ócio, num fim de expediente de sexta-feira, um parecer da ginecologia sobrava mesmo para o  doutorando-estagiário, que naqueles dias e  horários, era promovido e tinha a chance de  posar de doutor.

O conhecido nome da paciente, só aumentou a responsabilidade.

A doente, em seus últimos meses de vida, guardava muito da beleza que se podia imaginar, antes dos 57 anos registrados no prontuário.

Conversa rápida, não pela pressa do falsificado esculápio.

Talvez, pela intercorrência banal,  de pouca importância, num quadro tão avançado e de tratamento paliativo.

Ou pela psicologia da doença em si, quem haverá de saber?

A idade do imberbe aprendiz de urologista, ou pelo sotaque paraíba?

A ilustre paciente incidental não quis muita trela, apenas o suficiente para o doutorando pedir os exames.

As dúvidas voltaram  à lembrança, na leitura de  Diógenes da Cunha Lima, na Tribuna do Norte.

Se soubesse que quando bem  jovem, a escritora havia passado dez dia no horrivelzinho Grande Hotel, enquanto esperava um próximo voo e que de Natal, nada gostou, a não ser o que ouviu trancada no seu quarto.

O silêncio.

Haveria mais do que relembrar, se a timidez tivesse deixado.

Teria contado que o pai, político do interior, sempre fez ali, sua residência na capital.

Que era lá onde os irmãos gozavam as folgas do internato, entre homens importantes, de negócios, viajantes e marreteiros.

Falar do arrendatário da estalagem que entrou para a história da guerra, o Majó Theodorico Bezerra.

E da sua fazenda, no reino do Irapuru, fronteiras de Tangará.

E do nunca esquecido corte de cabelo, no majestoso salão  de Balduíno.

Não era mais a hora da estrela, quando encontrei Clarice Lispector.

Retrato de Clarice – Carlos Scliar, do livro Clarice Fotobiografia (1972).


(Texto, com algumas modificações, publicado em 20/04/2020)

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