3 de maio de 2024
Memória

REENCONTROS PRESENTES

Círculo do Bem (2020) – Juan Lucena retratou avós, vítimas da pandemia, partindo sem poder se despedir dos netos


Tão logo surgiram as vacinas, o grupo mais prioritário (e velho), passou a fazer
  planos para quando a imunidade chegasse.

Onze entre dez avós, nas entrevistas-relâmpago de TV,  revelavam, entre desejos,  a mesma intenção.

O abraço dos netos era o que primeiro vinha às cabeças grisalhas quando perguntadas o que fariam depois que se livrassem dos grilhões do isolamento sócio-familiar.

Depois da  segunda dose, os mais precavidos ainda esperam o tempo estipulado pelos fabricantes,  para a volta ao convívio de antes, sem medo nem traumas.

No reencontro das gerações, uma tese elaborada na solidão da sociologia pandêmica, logo perdeu sustentação.

Entre avós e netos não havia espaço para o novo normal.

Nada seria diferente do que um dia foi.

Logo estavam  de volta todas as prerrogativas e direitos bilaterais, incluídas as sessões vespertinas de Netflix Kids, torneios de Brawl Stars e as rotineiras  prorrogações das visitas,  encerradas somente depois da engordante massa pan da Pizza Hut.

Era hora também de se calcular e compensar as perdas de quem já não contava com muito tempo restante.

Ao convívio interrompido foi auditado e acrescido o tempo que restava, cada vez mais curto, com término já avistado no horizonte, no poente da vida.

Que fosse prevista e descontada também, a quase certa  chegada do implacável doutor alemão, o que tornava a providência ainda mais premente.

Negociado, o reencontro assegurou aos nipotes o direito a compensações.

Ouvidos e detectados os prejuízos dos pequenos por faltas em datas promocionais do comércio, os nonnos reconheceram que havia    presentes em atraso.

Neste retorno, haveria  de se ter cuidado com o acerto na escolha do que poderia surpreender o presenteado.

E evitar o ocorrido com o avô, metido a gaiato, quando resolveu provocar, de mentirinha, às vésperas  do quarto aniversário do segundo neto (numerado com orgulho, como todos os avós fazem), com a promessa de  um pijama com desenho de carneirinhos, que só serviu para disparar de volta e de pronto, a ameaça fulminante:

Se fizer isso, nunca mais venho chupar  jabuticaba com você.

Ao vovô-bobão,  não restou outra alternativa  a não ser pesquisar se a Caixa Econômica financiava Castelos do Aquaman.

O reencontro (2020) – Juan Lucena, pintor espanhol


(O texto,  publicado em 27/03/2022, faz parte do livro Aprendiz de Avô)

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