16 de maio de 2024
Memória

SAUDADE EM RECLUSÃO

Saudades de Nápoles (1895) – Bertha Worms – Pinacoteca do Estado de São Paulo


Memórias adormecidas, esquecidas nas mesmas caixas que guardam outras lembranças.

Das manhãs e tardes intermináveis na cidade preguiçosa.

Sem telefone.

Sem TV.

Sem outros perigos.

Nas longas viagens pelas ondas curtas, à procura de sons menos dissonantes e de chegar cada vez mais longe.

Pra depois da Rádio Central de Moscou, que o proibido tinha  gostinho especial.

Sem comida carregada.

E da desconfiança infantil que tudo que Chico Preto trazia no balaio da feira, carregado era.

Do luxo de lanchar biscoito cream cracker com guaraná.

E de tomar champagne todos os dias.

Dos montes de gibis que Seu Zé Gazeteiro trazia no PN do Recife, toda sexta-feira.

E vendia no quarto da pensão de Dona Regina, tia de Pipiu e Beto, espalhados em cima da  cama e pelo chão do quarto, transformados em vitrine.

Do martírio de tanta canja e de tanta sopa.

Ralas.

Dos supositórios de cibalena que enganavam o termômetro e escondiam a febre.

Das proibições de qualquer esforço físico.

De chegar perto de uma bola.

De olhar pra bicicleta.

De levantar-se para nada mais que as necessidades.

De andar sem pressa.

Arrastando os pés até o banheiro estrategicamente construído nos fundos da casa.

De não subir escadas.

Nem batentes, se a epidemia da vez era papeira, que quando descia, o menino nunca iria ser homem de verdade.

Do medo de virar um zebúzios, pedrodacalçapreta ou outro macho-fêmea saído do armário paroquial, era garantia do repouso absoluto.

De tomar banho sem molhar o cabelo, em tempos que shampoo não havia.

Com menos água que a pouca de sempre, trazida em galões, ombros, trens e latas de querosene.

Fria e doce, e gelada.

Do Piquiri.

Dos primeiros sinais que o mal estava indo embora, com a chegada das visitas desconfiadas, de quem procurava pegar a doença.

Mas só um pouquinho.

E, até que enfim, a permissão de ver o movimento da rua.

O que havia deixado de fazer.

E perdido.

O tempo passar.

E as pessoas.

Da balaustrada do alpendre, sentinela, em sua vigia.

Da volta às aulas, às santas freirinhas e a descoberta que sem elas, a vida era mais sem graça.

De pensar que depois que o progresso, o futuro e as vacinas chegassem, aqueles tempos de sofrimento não voltariam nunca mais.

E trouxessem tanta saudade.

 

Recordas-te? (1906) – Bertha Worms – Pinacoteca do Estado de São Paulo


(Publicação original em 20/04/2020)

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