8 de maio de 2024
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Tribunal não queria juízas: História de preconceito no RN repercute 54 anos depois

margarida-araujo

Do Valor

Margarida viveu num tempo em que o Judiciário não queria mulheres para a “magistratura vitalícia”. Aprovada em segundo lugar no concurso para o cargo de juiz, ela não foi convocada para nenhuma das 17 vagas que estavam abertas.

Haveria prejuízos à Corte, justificou, na época, um desembargador: “além do período de gestante (quando tem licença de vários meses), a mulher é um pouco dominada pelo marido e o juiz não deve nem pode ser influenciado por ninguém”.

Essa história, do ano de 1967, faz parte da vida de Margarida Araújo Seabra de Moura. Hoje, com quase 80 anos, ela é um dos nomes fortes da área jurídica do Rio Grande do Norte.

Tinha 26 quando foi barrada no tribunal.

Naquela época, era conhecida como a filha do Maneco, um advogado da capital. Admirava o pai, mas sentia a necessidade de caminhar com as próprias pernas. Esse foi um dos impulsos para a escolha pela magistratura.

“Como advogada, por mais que fizesse, seria sempre a filha do Manuel Augusto”, diz.

O impedimento ao cargo de juiz não tirou esse pensamento da cabeça de Margarida.

Ela fez carreira no Ministério Público do Estado. Entrou por concurso, nos anos 70.

Tempos mais tarde, depois de aposentada, foi convidada por um desembargador – quem diria na década de 60 – para trabalhar no tribunal. Seriam só seis meses como sua assessora. Acabou ficando por cinco anos.

Um estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de maio de 2019, mostra que a desigualdade de gênero continua. Menos de 40% das vagas da magistratura são ocupadas por mulheres.

A maioria, além disso, está concentrada na primeira instância, a fase inicial da carreira. A participação como desembargadora fica em torno de 25%. E nos tribunais superior  o índice é ainda menor: só 19,6% do total das vagas de ministro estão preenchidas por mulheres.

Quem vê a Margarida de hoje atuando nos tribunais – agora como advogada – custa a acreditar no preconceito que desviou o rumo da sua carreira. Há poucos dias, adaptada à rotina imposta pela pandemia, por exemplo, participava de uma live ao lado de Roque Antônio Carrazza, um dos grandes juristas do país.

Pouca gente sabia de sua história até dias atrás, quando o filho dela, Frederico – especialista em direito tributário e sócio de Margarida no Seabra de Moura Advogados – compartilhou em uma rede social parte do álbum que trata como uma relíquia da família: o mandado de segurança assinado pelo avô no fim dos anos 60.

As fotografias das páginas amareladas, com o texto rebuscado da época, mostram como o pai tentou livrar a filha das amarras da desigualdade de gênero. Mas não conseguiu. Perdeu a causa no tribunal do Estado e também no Supremo Tribunal Federal (STF).
Margarida não o acompanhou em nenhum dos julgamentos.

“Não tive sangue frio”, ela diz. Ainda tem fresca na memória a lembrança do primeiro sinal de que alguma coisa estava errada naquele concurso. “Eu estava na sala de espera para a prova oral. Um servidor disse que eles [os examinadores] não iriam aprovar moças. Era perda de tempo.”

Durante a prova, as suspeitas ficaram mais fortes. Eram cinco examinadores e geralmente, nos concursos, cada um fazia duas perguntas aos candidatos. Para Margarida foram cinco.

Depois, na prova de títulos, um candidato homem obteve pontuação mais alta pela experiência como professor de escola do que ela, que havia, por dois anos, atuado como  promotora substituta no Ministério Público do Estado. Ainda assim, arrancou o segundo lugar na disputa.

Naquela época, além da aprovação no concurso, havia votação entre os desembargadores para a formação de uma lista tríplice com os nomes dos indicados aos novos cargos. A escolha final cabia ao governador. O nome de Margarida nunca chegou a ele.

A família guarda recortes de jornal que mostram os protestos de estudantes de direito e os desdobramentos do caso.

“Eu recebi apoio de muita gente. Foi doloroso, me senti injustiçada, indignada. Havia estudado o ano todo para aquele concurso. Só folgava nas noites de domingo.”

Nos anos 80, a maternidade – uma das justificativas para a recusa ao  cargo de juiz – virou luta e mudou a carreira de Margarida. Ela se transformou num vetor de inclusão social. Um de seus feitos foi a criação da promotoria que atua em defesa dos direitos das pessoas com deficiência, quando esteve no comando do Ministério Público do Rio Grande do Norte.

Débora Seabra de Moura, filha caçula de Margarida, tem síndrome de down.

“Eu achei que estava vivendo uma tragédia quando ela nasceu. Perguntava ‘por que comigo?’. Era pura falta de conhecimento. Débora é a minha bússola. Uma mulher forte e bem sucedida”, derrete-se.

A filha de Margarida tornou-se a primeira educadora com síndrome de down do Brasil . É professora em uma escola particular de Natal, recebeu o prêmio Darcy Ribeiro de Educação e já discursou em um evento da ONU.

 TL COMENTA  

54 anos depois,  uma história que era restrita a a familiares e amigos pode ser compartilhada graças a tecnologia, chegando a um dos maiores jornais do Brasil.

Do Instagran do filho Frederico para o Linkedin, milhares de visualizações e a imprensa nacional tomou conhecimento. Claro, não deixaria uma pérola dessas passar sem registro.

Com ela, o exemplo de quem apesar dos preconceitos que a vida impôs não desistiu, nem desanimou. Lutou sem perder a ternura.

Esta é um pouco da história de Margarida que esta colunista tem enorme gratidão de ter feito parte por seis anos. Como sócias. Eu, recém-formada, ela recém-aposentada.

Porque a vida não é contada por quedas, mas por quem se levanta. .. Viva Margarida!

3 thoughts on “Tribunal não queria juízas: História de preconceito no RN repercute 54 anos depois

  • Manuela Lima

    Que belo texto, Margô merece essa homenagem em forma de escrita. ??????

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  • observanatal

    Lemos e parece que estamos acompanhando tudo.

    Que coragem! Talvez não houve interrupção no trajeto, talvez tudo caminhou como deveria ser, para chegarmos hoje e vermos o quanto foi conquistado e o quanto ainda falta.

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  • Antes o RN teve uma juíza, Valderez(?), parece que foi afastada e ficou em disponibilidade.
    Era mãe de Themis e Marco Polo. Moravam na Praça Pedro Velho.
    Conhecia-os e sabia que a mãe era juíza. Alguém sabe mais?
    E as razões – lembro de Margarida – mas o da Dra. Valderez(tenho dúvidas no nome) foi bem antes.

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