1 de maio de 2024
Memória

UMA VIDA DE JOELHOS

Sargento Maori (1944) – Russell Clark – Arquivos da Nova Zelândia


O sonho realizado foi muito além de tudo que podia imaginar o menino da cidade sem desafios, nem futuro.

Ter sido convocado na apresentação obrigatória para o serviço militar, a maior de todas as pequenas alegrias na vida dura dos afazeres, no pedaço de terra que o pai ganhou do avô,  e certo de ser repartida com meia dúzia de irmãos.

A vida que tinha pedido a Deus, podia ser ainda melhor.

No bom desempenho das tarefas, o estímulo para ir mais na frente, e subir na vida, o fez cabo.

Ser militar para sempre, este era o plano.

Muito estudo e um curso depois, o que imaginava o topo da carreira.

Sargento.

Terceiro, como todos começam. A hierarquia seria respeitada, a seu tempo.

Auxiliar e homem de confiança dos oficiais superiores, instrutor e chefe de pelotão de uma dúzia de recrutas, fazia sentir-se também um comandante.

Em conversa camarada com um colega de patente, a sugestão para um trabalho mais tranquilo, com possibilidades de acúmulo de função civil.

Passando o veterano para a reserva, estaria vaga a melhor lotação de todas. Que seria dele.

Para integrar  o corpo de saúde, mais um investimento.

A reforma e a herança aguardariam a conclusão do curso de técnico de enfermagem, para ser passada à frente para o mais moderno.

Em tão pouco tempo, a espiral de melhorias não parava.

Logo,  virou o instrumentador preferido dos cirurgiões.

Alguns, confiavam o auxílio nas operações que sempre pedem uma mão amiga  a mais.

Pegou fama, o capricho como dava os pontos na pele.

Daí pra frente,  o doutor tirava as luvas antes do fim e saia do campo com a mesma despedida.

Agora era com ele mesmo.

Sozinho.

Conhecia o jeito de todos que operavam, quem era mais cuidadoso e os que tinham o azar dos maus resultados repetidos.

Quando começou a sentir as consequências das partidas de futebol em atletas de fim-de-semana e sobrepeso, foram os joelhos que reclamaram mais.

O tenente ortopedista recém-chegado, tão novo e que também devia ter acabado de se formar, parecia querer fazer clientela rapidamente.

Ao ouvir as queixas do colega de equipe, ali mesmo, no estar médico, fez o exame superficial, fechou o diagnóstico e indicou o tratamento.

Cirúrgico e determinado.

Exames pré-operatórios sendo esquecidos e adiados, enquanto o atento paciente e observador da perícia do ás do bisturi,  fazia as observações técnicas.

Seus meniscos e ligamentos não se animavam a serem mexidos nem descruzados por quem se mostrava tão inseguro e com mãos ainda aprendizes das manobras mais habilidosas.

Esgotadas todas as desculpas, a ideia de procurar outro hospital mais especializado foi transformada em insubordinação.

E prisão administrativa.

Por incríveis dois anos que só não foram prorrogados pelo pedido de baixa, com direito aos soldos proporcionais ao tempo de serviço.

A carreira militar prematuramente interrompida, deixou uma certeza.

A cidade grande era destino.

Nas muitas voltas que já deu, encontrou o meio de vida, por ironia, cuidando de outras rótulas.

A patela ainda avariada não impede o bombeiro hidráulico de ser mestre em tubos, conexões e joelhos de PVC.

O esquadrão sanitário (1944) – Russel Clark – Arquivos da Nova Zelândia


Russell Stuart Cedric Clark (1906/1966)
foi um Artista Oficial do Exército da Nova Zelândia, nos últimos estágios da Segunda Guerra Mundial, retratando o teatro do Pacífico, na área das Ilhas Salomão.

(Texto original publicado em 12/09/2020)

2 thoughts on “UMA VIDA DE JOELHOS

  • Geraldo Batista de Araújo

    Ciduca foi uma das melhores figuras que eu conheci. Foi uma das grandes perdas que a covid me levou. Faz muita falta.

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    • José Josias da Silva

      Francisco de Assis Barros, que descanse em paz, caicoense da gema e gente fina.

      Resposta

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