UMA VIDA DE JOELHOS
O sonho realizado foi muito além de tudo que podia imaginar o menino da cidade sem desafios, nem futuro.
Ter sido convocado na apresentação obrigatória para o serviço militar, a maior de todas as pequenas alegrias na vida dura dos afazeres, no pedaço de terra que o pai ganhou do avô, e certo de ser repartida com meia dúzia de irmãos.
A vida que tinha pedido a Deus, podia ser ainda melhor.
No bom desempenho das tarefas, o estímulo para ir mais na frente, e subir na vida, o fez cabo.
Ser militar para sempre, este era o plano.
Muito estudo e um curso depois, o que imaginava o topo da carreira.
Sargento.
Terceiro, como todos começam. A hierarquia seria respeitada, a seu tempo.
Auxiliar e homem de confiança dos oficiais superiores, instrutor e chefe de pelotão de uma dúzia de recrutas, fazia sentir-se também um comandante.
Em conversa camarada com um colega de patente, a sugestão para um trabalho mais tranquilo, com possibilidades de acúmulo de função civil.
Passando o veterano para a reserva, estaria vaga a melhor lotação de todas. Que seria dele.
Para integrar o corpo de saúde, mais um investimento.
A reforma e a herança aguardariam a conclusão do curso de técnico de enfermagem, para ser passada à frente para o mais moderno.
Em tão pouco tempo, a espiral de melhorias não parava.
Logo, virou o instrumentador preferido dos cirurgiões.
Alguns, confiavam o auxílio nas operações que sempre pedem uma mão amiga a mais.
Pegou fama, o capricho como dava os pontos na pele.
Daí pra frente, o doutor tirava as luvas antes do fim e saia do campo com a mesma despedida.
Agora era com ele mesmo.
Sozinho.
Conhecia o jeito de todos que operavam, quem era mais cuidadoso e os que tinham o azar dos maus resultados repetidos.
Quando começou a sentir as consequências das partidas de futebol em atletas de fim-de-semana e sobrepeso, foram os joelhos que reclamaram mais.
O tenente ortopedista recém-chegado, tão novo e que também devia ter acabado de se formar, parecia querer fazer clientela rapidamente.
Ao ouvir as queixas do colega de equipe, ali mesmo, no estar médico, fez o exame superficial, fechou o diagnóstico e indicou o tratamento.
Cirúrgico e determinado.
Exames pré-operatórios sendo esquecidos e adiados, enquanto o atento paciente e observador da perícia do ás do bisturi, fazia as observações técnicas.
Seus meniscos e ligamentos não se animavam a serem mexidos nem descruzados por quem se mostrava tão inseguro e com mãos ainda aprendizes das manobras mais habilidosas.
Esgotadas todas as desculpas, a ideia de procurar outro hospital mais especializado foi transformada em insubordinação.
E prisão administrativa.
Por incríveis dois anos que só não foram prorrogados pelo pedido de baixa, com direito aos soldos proporcionais ao tempo de serviço.
A carreira militar prematuramente interrompida, deixou uma certeza.
A cidade grande era destino.
Nas muitas voltas que já deu, encontrou o meio de vida, por ironia, cuidando de outras rótulas.
A patela ainda avariada não impede o bombeiro hidráulico de ser mestre em tubos, conexões e joelhos de PVC.
Russell Stuart Cedric Clark (1906/1966) foi um Artista Oficial do Exército da Nova Zelândia, nos últimos estágios da Segunda Guerra Mundial, retratando o teatro do Pacífico, na área das Ilhas Salomão.
(Texto original publicado em 12/09/2020)
Ciduca foi uma das melhores figuras que eu conheci. Foi uma das grandes perdas que a covid me levou. Faz muita falta.
Francisco de Assis Barros, que descanse em paz, caicoense da gema e gente fina.