3 de maio de 2024
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VIDA DE JOELHOS

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O sonho realizado foi muito além de tudo que podia imaginar o menino da cidade sem desafios, nem futuro.

Ter sido convocado na apresentação obrigatória para o serviço militar, a maior de todas as pequenas alegrias na vida dura e de afazeres,  no pedaço de terra que o pai ganhou do avô e certo de ser repartido com meia dúzia de irmãos.

A vida que tinha pedido a Deus, podia ser ainda melhor.

No bom desempenho das tarefas do quartel, o estímulo para ir mais à frente e subir na vida, o fez cabo.

Ser militar para sempre, este era o plano.

Muito estudo e um curso depois, o que imaginava o topo da carreira. Sargento.

Terceiro, como todos começam. A hierarquia seria respeitada, a seu tempo.

Auxiliar e homem de confiança dos oficiais superiores, instrutor e chefe de pelotão de uma dúzia de recrutas, fazia sentir-se também um comandante.

Em conversa camarada com um colega de patente, a sugestão para um trabalho mais tranquilo, com possibilidades de acúmulo de função civil.

Passando para a reserva, estaria vago a melhor lotação de todas, em todo o batalhão. E que seria dele.

Para integrar  o corpo de saúde seria necessário mais um investimento. A nova herança aguardaria a conclusão do curso de técnico de enfermagem, para ser passada à frente.

Em tão pouco tempo, a espiral de melhorias não parava. Logo,  virou o instrumentador preferido dos cirurgiões.

Alguns confiavam o auxílio nas operações que sempre pedem uma mão a mais.

Pegou fama, o capricho como dava os  pontos de pele.

Daí pra frente,  o doutor tirava as luvas antes do fim e saia do campo com a mesma despedida. Agora era com ele mesmo. Sozinho.

Conhecia o jeito de todos que operavam, quem era mais cuidadoso e os que tinham o azar dos maus resultados repetidos.

Quando começou a sentir as consequências das partidas de futebol, em atletas de fim-de-semana e sobrepeso, foram os joelhos que reclamaram mais.

O tenente ortopedista recém-chegado, tão novo e que também devia ter acabado de se formar, parecia querer fazer clientela rapidamente.

Ao ouvir as queixas do colega de equipe, ali mesmo, no estar-médico, fez o exame superficial, fechou o diagnóstico e indicou o tratamento. Cirúrgico e determinado.

Exames pré-operatórios sendo esquecidos e adiados, enquanto o atento paciente e analista da perícia dos áses do bisturi,  fazia as observações técnicas.

Seus meniscos e ligamentos não se animavam a serem mexidos nem descruzados por quem se mostrava tão inseguro e com mãos ainda aprendizes das manobras mais habilidosas.

Esgotadas todas as desculpas, a ideia de procurar outro hospital mais especializado foi transformada em insubordinação.

E prisão administrativa.

Por incríveis dois anos que só não foram prorrogados,  pelo pedido de baixa, com direito aos soldos proporcionais ao tempo de serviço.

A carreira militar prematuramente interrompida, deixou uma certeza. A cidade grande era o destino.

Nas muitas voltas que deu, encontrou seu meio de vida, por ironia, cuidando de outros joelhos.

A rótula ainda bichada não impede o bombeiro hidráulico de ser mestre em tubos, conexões e joelhos de PVC.
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