3 de maio de 2024
Memória

VOZES ESQUECIDAS

A Agonia no Getsêmani (1465) – Giovanni Bellini – National Gallery, Londres


Aprender com o passado, na crença que a História se repete, era só
  o que se tinha a fazer em  tempos de isolamento compulsório.

Procuravam-se relatos das grandes epidemias para encontrar nas tragédias quase esquecidas, refúgio e saída para angústias revividas.

Fotos esmaecidas, manchadas pelo tempo, textos em linguagem arcaica, e as mesmas emoções que os anos não conseguem esgarçar.                                     

Cenas inimagináveis de corpos sem vida, depositados nas calçadas para serem recolhidos como lixo doméstico.

Os números do passado, apresentados sem exatidão, quando os coveiros perdiam as contas dos enterros em valas comuns.

Fora uma ou outra descrição da agonia de familiar ou pessoa próxima,  as vítimas de 1919, desafortunadas, sem sorte, sem defesas e sem imunidade,  não deixaram registros dos seus dramas.

Em tempos cibernéticos, o começo da  pandemia foi acompanhado em tempo real.

Sempre com uma atormentante dúvida.

Quem era o guardião  da última palavra?

Ninguem havia sido eleito por ter mostrado  capacidade de enfrentar problemas como os que surgiram depois da apuração dos votos.

O que a todos afligia era completamente novo. Surgido  do nada. Não  se sabia o que fazer diante do dissimulado e sorrateiro mutante.

Atônita, a humanidade vagava à procura  de um condutor. Um maestro.

No futuro, em outras catástrofes planetárias, nas buscas de alívio para os espíritos, as desgraças dos antepassados do século XXI também serão relembradas.

Será que, passado um século, entenderão o suplício de  um advogado carioca, isolado num quarto de hospital de luxo?

Seguindo o que devia ser feito, diabético e obeso, ao perceber que a tosse estava mais constante e a febre persistente, procurou o melhor hospital do bairro de classe média alta do Rio de Janeiro.

Deixado, conforme tocante depoimento gravado, numa jaula onde os cuidadores não ousavam entrar.                       

Por dois dias não teve direito a nenhum cuidado de higiene. Nem ao que nunca negou ao seu cãozinho de estimação: um lugar  para aliviar as necessidades de todos os animais.

Cansado de clamar por ajuda, descreveu em áudio, a própria agonia.

Dois dias depois, familiares registraram em boletim de ocorrência policial, mais uma morte atribuída ao coronavírus.

E ao vírus do medo, alimentado  pela falta de conhecimentos e desconfiança nos equipamentos de proteção individual.

Políptico de São Vicente Ferrer (1468) – Giovanni Bellini – Basílica de São Pedro e São Paulo, Veneza

(Texto publicado em 29/03/2022)

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