NO CANTO DOS INOCENTES
De três não passam mais.
No planejamento familiar dos nubentes hodiernos, a contagem dos filhos termina no primeiro par.
Raríssimos são os que arriscam tentativas de desempate, quando o casal almejado vira parelha.
Por mais abordagem psicológica e preparo, a chegada do irmãozinho nunca vem sem despertar a ciumeira no reizinho do pedaço.
O fenômeno é mais observado nas cortes onde só varões assumem os tronos, dizem.
O anúncio da novidade, o crescimento na barriga, os pontapés sentidos. Nada se compara com a chegada daquele embrulho que passa de mão em mão.
Com o cuidado que o atento observador não lembra ter sido merecedor.
Bem que já havia a desconfiança que estavam aprontando alguma.
Começaram a conversar muito sobre um certo alguém que iria ficar com tudo que já não usava mais.
Que teria de dividir a casa, o quarto e os braços da mãe.
Os brinquedos que já enjoava e os que ainda viria a ganhar.
Estava explicado porque resolveram, passaria parte do tempo, separado, sem a atenção de sempre.
A creche fazia parte do plano urdido. Quem já viu, terceirizar um filho?
Também dá pra notar que os avós, tão devotados e exclusivos, concordam com a traição. Entram no jogo e não mudam de tática.
Imprevisíveis, as reações de quem se achou preterido dos direitos adquiridos.
Incrível, como dissimulados, argumentam ao explicar as reações e como querem solucionar o maior problema que já apareceu na curta e até então, maravilhosa vida.
Quando a mãe deixou os dois sozinhos, o escanteado resolveu cuidar do recém-nascido, como todos vinham fazendo.
Uma chuveirada de areia, com direito a esfoliação dérmica, foi explicada candidamente:
–Você não disse que ele era meu? Estou brincando de dar banho.
Ao ser apanhado na saída do jardim da infância, o menor enjeitado foi logo perguntando à ré, acusada de abandono de vulnerável:
–O menino já morreu?
De pouco adianta redobrar as atenções pra quem se sente e foi preterido.
Eles percebem.
E até em brincadeira de fazer desaparecer objetos, procuram um jeito de se livrar da concorrência.
Ao avô-ilusionista-prestidigitador, a inocente pergunta:
–Você sabe mágica pra desaparecer bebê chorão?
O enciumado não se sente ameaçado somente pelos seres de quatro patas que um dia haverão de aprender a andar sobre duas.
No campo adversário, na casa da outra, a avó ficou sabendo que a cadelinha, rainha do lar e do ninho vazio, despertava os instintos mais primitivos do pequeno buda.
O convite para cumplicidade em hediondo crime, nunca podia ter partido daquela vozinha sussurrada pelo fedelho de três anos incompletos:
–Vovó, vamos matar Kika?
(Publicação original em 20/07/‘2020)