RESENHA DA TRAGÉDIA QUE NÃO ACONTECEU
Depois de cumprir suspensão compulsória, o Carnatal saudou as autoridades sanitárias, pediu passagem, e passou incólume pelas estatísticas macabras.
Se bem que não se saiba o motivo de tanta alegria, só o fato de ter resistido ao mau presságio, já foi o suficiente para manter a energia que se renova em sons de guitarras e tambores.
Mas este ano não foi igual aos 30 que passaram.
A cidade já não se incomoda com armações nem desmontes das estruturas metálicas.
O trânsito não se altera, além do que permitem os preços dos combustíveis.
Hotéis, se não registraram overbooking, ganharam ânimo na esperança que o turismo interno haverá de fazer outras estações nas alturas.
Os restaurantes, que já acompanhavam o ritmo novo normal, puderam botar mais água no feijão.
A exigência do passaporte da vacina fez esquecer os temíveis outros perigos em volta dos corredores da folia.
Se houve distribuição de camisinhas, ninguém ficou sabendo por anúncios de TV.
O bloco dos jornalistas politicamente corretos foi empastelado.
Os poucos políticos que apareceram, receberam mais censura nas redes sociais que citações do alto dos palcos em movimento.
A anunciada sombra de thanatus não encobriu vênus.
Eros continuou lançando suas flechas a céus, refletores e holofotes abertos.
Casais de todas as formas de amar, voltaram a se encontrar, longe dos sites de relacionamento.
A rotina da cidade não sofreu mudanças.
Ninguém precisou sair para garantir tranquilidade. E silêncio.
Foi dispensado o ponto facultativo na sexta-feira gorda de axé.
Em home office não se precisou de autorizaçaão do chefe para queimar o expediente, na ressaca da segunda.
As contas do fim de ano voltam a ser pagas com a renda extra das barraquinhas armadas nas calçadas e o peso gelado das caixas de isopor nas cabeças de quem tem sobrevivido de auxílios emergenciais.
Do entrudo, ficou saudade. E lembranças dos amores cantados em versos de poetas baianos.
Se antigos foliões choram o tempo das fantasias de pierrôs, colombinas, arlequins, piratas da perna-de-pau (e do rum montilla), as lágrimas agora rolam pelos abadás, mamãe-sacodes e cheirinhos da loló.
O lockdown seletivo e voluntário passou pelo seu mais rigoroso teste.
Depois de quase dois anos de medo, a folia foi a primeira grande reação coletiva contra a doença mais assustadora.
Garantido pelos comitês científicos, o direito de ir, vir e se esbaldar, só não foi atrás do trio elétrico quem, vacinado, não quis.
Ou morreu na pandemia.
Di Cavalcanti (1897-1976)