14 de maio de 2024
Memória

A PANDEMIA SEGUNDO VINICIUS

Retrato de Vinicius de Morais (1938) – Cândido Portinari – Acervo Suzana de Moraes (1940/2015)


Os dias eram todos  iguais.

Na quarentena, o ritmo biológico regido por alguma memória ancestral, comandava nosso comportamento, como se a rotina trabalho/descanso/lazer não estivesse comprometida.

O que explica que depois de meses de confinamento, ainda se pensasse em fazer tarefas em dias certos e determinados?

Como se todo dia,  não fosse dia de índio.

Trocar as roupas de cama às segundas, deixar a louça suja acumular nos fins de semana, pedir a comida do restaurante predileto aos domingos.

Uísque da happy hour, vinho do sábado à noite, cervejinha aos domingo.

Ninguém é de ferro na segunda.

As mesmas 24 horas, tardes, manhãs e noites de sempre, e os dias tão iguais.

Se todos os bares ficavam vazios, não era porque não era sábado.

 Sábados e todos os outros dias de isolamento foram dias  para revisitar Vinicius de Moraes, n’ O Dia da Criação.

Porque naquele momento havia um casamento.

Adiado.

Havia um divórcio e um violamento.

Na saúde e na doença.

Havia um homem rico que se matava.

E tantos pobres.

Havia um incesto e uma regata.

Clandestinos.

 Havia um espetáculo de gala.

Na live.

Havia uma mulher que apanhava e calava.

E  uma bela Maria da Penha, adormecida.

Havia um renovar-se de esperanças.

Na vida que continuava.

Havia  uma profunda discordância.

Pelo poder.

Havia um sedutor que tombava morto.

Narciso.

Havia um grande espírito de porco.

Da natureza.

Havia uma mulher que virava homem.

No armário.

Havia criancinhas que não comiam.

Em jejum de escolas.

Havia um piquenique de políticos.

Gulosos.

Havia um grande acréscimo de sífilis.

Dengue, chikungunya, zica, covid-19.

Havia um ariano e uma mulata.

Um japonês e um mameluco. 

Havia uma tensão inusitada.

No futuro que não nos pertencia.

Havia adolescências seminuas.

Ninfetas.

Havia um vampiro pelas ruas. 

Vazias.

Havia um grande aumento no consumo.

Essencial.

Havia um noivo louco de ciúmes. 

Virtuais.

Havia uma garden party na cadeia.

Domiciliar.

Havia uma impassível lua cheia. 

De saudades.

Havia damas de todas as classes.

Mascaradas.

Umas difíceis, outras fáceis.

De olhar.

Não havia um beber e o que brindar.                    Não havia a perspectiva do domingo.              Porque então, todos os dias eram iguais.

 

Retrato de Maria Lúcia Proença (1938) – Cândido Portinari – Coleção particular


*** Maria Lúcia Proença foi a quarta mulher de Vinícius de Moraes. Eles se casaram em 1958 e ficaram juntos por 5 anos.

http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/o-dia-da-criacao#.XtJMuQ_x4q0.email


(Com modificações, este texto foi publicado em 31/05/2020, com o título Feitiço do Tempo)

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